A vida a um rio

A literatura navega pelas águas dos mais diversos rios, percorrendo geografias e criando conexões, desde a remota Antiguidade

Rios são águas que fluem sobre as superfícies dos continentes, como um contínuo trabalho de erosão das rochas e dos solos por onde passam. A percepção em poesia traduz com perfeição esse caminho, nos versos de António Nobre,

“Ao longe, os rios de águas prateadas
Por entre os verdes canaviais, esguios,
São como estradas líquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!”

Os rios passam ao longo de uma paisagem, e interagem com outras águas, que formam uma variedade de águas. Nos olhares de Alberto Caeiro, a calmaria não suporta essas águas, e por conseguinte toda a diversidade biológica em sua singela interpretação de si,

“O meu olhar azul como o céu 
É calmo como a água ao sol.
É assim azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol
de modo a ele ficar mais belo...”

Os rios se integram em paisagens de águas mansas e paradas, como as áreas alagadas. Temos as veredas, os pantanais, os lagos de várzea, e por aí vai... 

O nosso Pantanal vibra nos versos de Edir Pina de Barros,

“Não há nada mais bonito
que o Pantanal alagado,
e na linha do infinito,
ver o céu amplo e azulado!

Os jacarés bocejantes,
mormacentos, preguiçosos,
as araras revoantes,
tuiuiús esplendorosos!”

Os rios, chamados genericamente de cursos d’água, podem ser de vários tamanhos, dos pequenos córregos aos grandes rios. A grande maioria são de pequeno porte e de cabeceira, ou seja, nascem no alto das montanhas, como ocorre no Cerrado do Brasil central. 

O brotar dos rios e seus caminhos são retratados por Ruth Salles,

“O rio, no alto da serra,
serpenteia quando nasce,
a cavar fundo na terra
um leito por onde passe.

E muda as voltas que dá
e, nesse trabalho intenso,
entre os montes, cá e lá,
vai abrindo o vale imenso.” 

Temos rios de várias cores. Alguns têm a cor de chá, as águas pretas, como o Rio Negro da Região Amazônica, devido à matéria orgânica vegetal dissolvida em suas águas. 

Outros são transparentes como as águas de cabeceira do Cerrado. 

E ainda temos as águas marrons pela matéria suspensa, com a erosão dos solos ao longo dos rios, como ocorre com o Rio Amazonas.

Tantas águas são exaltadas por Sá de Miranda,

“Eu vira já aqui sombras, vira flores, 
vi tantas águas, vi tanta verdura, 
as aves todas cantavam d’amores. 

Tudo é seco e mudo; e, de mistura, 
também mudando-m’eu fiz doutras cores: 
e tudo o mais renova, isto é sem cura!”

Dependendo do relevo da região, os rios podem cair em queda forte, e em cascata, por encostas íngremes sobre grandes rochas, serpentear por vales suaves ou fluir por amplas planícies à medida que se aproximam do mar. 

O serpentear dos rios dá fôlego ao trilho da canoa de Castro Alves,

“Lá no meio do rio, que cintila, 
Como o dorso de enorme crocodilo, 
Já manso e manso escoa-se a canoa.
Parecia, assim vista ao sol poente,
Esses ninhos, que tombam sobre o rio,
E onde em meio das flores vão chilrando
Alegres sobre o abismo — os passarinhos!...”

Nos riachos de cabeceira, a mata de galeria protege o rio e fornece o alimento para os organismos, com a queda de folhas e galhos. A diversidade biológica é única e indica águas limpas e de condições naturais. Em seu baile, Castro Alves disseca a beleza da riqueza biológica,

“Que belas as margens do rio possante, 
Que ao largo espumante campeia sem par!... 
Ali das bromélias nas flores doiradas
Há silfos e fadas, que fazem seu lar...”

À medida que o rio se afasta da sua nascente, tende a tornar-se maior, mais profundo e aberto; e tende a alterar-se seu leito de pedras grandes a pequenos cascalhos, com fundo arenoso ou argiloso quando chega ao mar.

O poeta português Fernando Pessoa enaltece o amor ao seu rio, que por ser livre, encontra o mar e o mundo,

“Pelo Tejo vai-se para o Mundo. 
Para além do Tejo há a América 
E a fortuna daqueles que a encontram. 
Ninguém nunca pensou no que há para além 
Do rio da minha aldeia.”

A chegada do rio ao oceano é ao mesmo tempo tímida e imperiosa. Avança suas águas dentre canais lamacentos antes do encontro frontal do imenso mar. A mistura de águas doces e salgadas forma uma travessia de espécies aquáticas, que permanecem dentro de espectro salino mais adequado ao seu viver. Em seu mar em flor, Cruz e Souza traduz,

“Trazes na carne o eflorescer das vinhas, 
Auroras, virgens músicas marinhas, 
Acres aromas de algas e sargaços...”

Assim, os rios apresentam uma conexão natural com a área ao redor, e o seu funcionamento responde a esta complexa integração, tanto ao longo do rio como através de suas margens. Em seu anoitecer, Hermes Fontes carrega essa conexão em movimentos voluptuosos das águas,

“E, enquanto a ondulação 
das águas marulhosas
arma em seu ritmo, imprevistas danças
isócronas, mas sempre desiguais;
e a escumilha na praia arma frouxéis de rosas,
efêmeros, sutis, quase irreais”

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, afirmou Heráclito de Éfeso, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas. Tudo flui e segue seu ciclo natural. A vida a um rio...