O jornalista, poeta e compositor Ademir Assunção dá forma final ao livro O jogo de xadrez & outros poemas, do qual revista Pernambuco publica o inédito Dead man. Seu projeto é lançá-lo ainda este ano. Dividido em três partes, está assim por ele constituído: 1) “O Jogo de xadrez”, uma alegoria escatológica (tanto no sentido bíblico quanto corporal), tendo como mote as peças do xadrez (rei, rainha, bispo, cavalo, torre e peões), 2) “O homem sem chão”, cinco poemas também alegóricos, tematizando as tralhas e traumas que humanos carregam (inutilmente) nas costas nesses tempos de tempo presente vertiginoso e solúvel, e 3) Poemas prosaicos, menos alegóricos, mais, digamos, realistas.
Ademir já publicou 18 livros, entre os quais: LSD nô, Zona branca e Risca faca, Pig Brother (poesia), Cinemitologias (prosa poética), Faróis no caos (jornalismo cultural), Adorável criatura Frankenstein e Ninguém na Praia Brava (romance) e A máquina peluda (contos). Com A voz do ventríloquo ganhou o Prêmio Jabuti de poesia, em 2013. Lançou os CDs Rebelião na Zona Fantasma
e Vira-latas de Córdoba, tem parcerias com Edvaldo Santana e foi gravado por Itamar Assumpção, Titane, Fabiana Cozza e Ney Matogrosso, entre outros cantores.
DEAD MAN
para jim jarmusch, obviamente
pode ser que a mágica aconteça
ao menos uma vez na vida
e de forma tão inesperada
que pareça um sonho
– ou pesadelo, se for intenso e real demais:
você se chama william blake
e acaba de balear o filho do homem mais rico
e selvagem
de uma cidadezinha nos cafundós do mato grosso do sul
cuja segunda maior atividade econômica
é a fabricação de esquifes
o filho do homem mais rico
e selvagem
da cidadezinha
era também o ex-marido da mulher
que estava ao seu lado na cama
só que você não sabia
o homem mais rico e selvagem
da cidadezinha
não gostou nada de perder o filho
ainda mais
em tais circunstâncias
e convocou três dos pistoleiros mais sanguinários
da tríplice fronteira
para acabar com a sua raça
na fuga
você roubou o melhor cavalo
do filho do homem mais rico
e selvagem
da cidadezinha
o que o deixou ainda mais furioso
depois de três dias vagando pelo cerrado
o ferimento no braço sangrando
você finalmente desmaia
– sim, o filho do homem acertou-lhe um balaço –
e quando acorda
sabe-se lá quantas horas passadas
vê o rosto enorme de um índio kadiwéu
muito perto do seu próprio rosto
tão perto que você pode sentir o bafo quente dele
nas suas fuças
você não vai acreditar
mas o índio kadiwéu fez mestrado em cambridge
há alguns anos
e sabe quem ele estudou?
pois é:
william blake!
ao saber o seu nome
o índio kadiwéu
que parecia bastante amedrontador
abre um sorriso inacreditavelmente
mágico
e decide que será seu guia
até – bem, deixemos isso pra lá
por enquanto
o índio kadiwéu cura sua ferida no braço
com ervas e pajelanças
e o protege da morte certa
nas mãos dos pistoleiros sanguinários
que estão sedentos pela recompensa
oferecida pelo homem mais rico
e selvagem
da cidadezinha dos cafundós do mato grosso do sul
só que o índio kadiwéu é meio louco
e acaba te metendo em encrencas
ou melhor: você mesmo vai se metendo em encrencas
cada vez maiores e piores
a fuga (do herói
involuntário) a fome e as balas
zunindo como abelhas selvagens
acabam agulhando a carne
– o que aconteceria mais dia menos dia
afinal, profecias, caro amigo, sempre se cumprem
você tem visões no coração do cerrado
– vê alces de duas cabeças
águias voando para trás
porcos do mato com cauda de crocodilo –
o corpo ardendo em febre
e encharcado de suor
cada vez mais fraco
até que chega o momento crucial:
o índio prepara uma canoa ornada com flores selvagens
o coloca dentro dela
faz um minucioso ritual de despedida
melhor dizendo: de travessia para a terceira margem
e a empurra para as águas do rio paraguai
a canoa desliza suavemente rio adentro
o sol inclemente faz seu rosto arder
a lua banha seus olhos com um brilho prata
e você vai se esquecendo de tudo
e as imagens vão se apagando
vão se borrando
e então você reúne todas as suas forças
o pouquinho que ainda resta
e pergunta à brisa quente e úmida
o nome do índio kadiwéu
nobody – a brisa responde