Num universo de especializações e fragmentações, ainda temos a rara alegria de encontrar inteligências integrativas. Elas são capazes, por exemplo, de fazer algumas sensibilidades se moverem sobre as águas do tempo e, assim, fazerem certo espírito renascentista encarnar-se na pele do contemporâneo. Alípio Carvalho Neto, pernambucano de Floresta e absolutamente cosmopolita, é um artista que, hoje, reúne predicados que o tornam poliglota e polígrafo, atento à imaginação em variados setores: professor de grego e de literatura, é também poeta e músico – com doutoramento pela Universidade de Roma, a respeito do trombonista e compositor Giancarlo Schiaffini. Mas Alípio é também teórico da literatura e tradutor de poesia, tendo recentemente vertido para o português, sob o selo da editora Confraria do Vento, o livro N,ÃO (2023), do escritor grego Demosthenes Agrafiotis.
O trânsito largo por tantos terrenos criativos é necessária consequência do espírito livre que anima o poeta brasileiro. Enquanto latifundiário da percepção, na criação ele pratica o que denomina a “humilhação do espaço”. Vale dizer, com isso, que o estilo poético de Alípio se inscreve também na tradição de uma Dichtung minimalista. Linhagem longínqua, emitindo seus ecos já na poesia helênica de Safo, faz escala nos haicais de Bashô e revitaliza-se, entre nós, pelos experimentos da poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari. Não entenda muito rápido o leitor: se o antirretoricismo, por vezes, transmite a impressão de uma liberdade fácil, ele é, rigorosamente, fruto de um esforço de seleção, que repousa na cama estreita da contrainte. Mesmo quando o improviso compõe a gramática da criação (o que o autor aprecia na obra de Schiaffini), fazer o verbo andar em rédea curta é, para Alípio, desejo recorrente.
Enquanto crítico literário, Carvalho Neto mostra que seu ofício não começa pela eleição da bibliografia teórica, mas pela escolha fina de seu objeto – os autores de predileção, o seu paideuma. O rigor da seleção era uma exigência do poeta-crítico Ezra Pound e de seu discípulo Mário Faustino, sobre quem Alípio desenvolveu pesquisa de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco, avaliando o caráter agônico, neobarroco, do escritor piauiense. Não por acaso, em Mário também encontraremos a condensação poética enquanto valor criativo. Atuando no solo da teoria da literatura, Alípio (como um bom erudito) destacará de modo positivo a importância que Faustino emprestou às conquistas empreendidas pela tradição poética – instrumento, aliás, indispensável para a consecução de uma vanguarda propositiva.
É relevante sublinhar os aspectos acima, uma vez que eles congregam as bases axiológicas da obra artística alipiana. O compositor de Triatoma Infestans (Creative Sources, 2011) busca uma atualização do sangue da cultura, plasmada pelo minimalismo e pela aglutinação formal, ambos alimentando-se num consistente conhecimento do que a humanidade já elaborou.
Para constatar esses vetores de renovação, leiamos um excerto do poema “Epidauro”, que integra o volume Ex Inanitio, (Edição de Arte Jean-Fabien Phinera, 1995):
O ponteiro
Pátina de saliva catástrofe,
Medusas simulam danças esparsas
Na sólida transparência das águas
Na baía de Pal’Epidauro,
E como palavras
Jamais mudarão o curso político dos mares.
A comunhão entre termos que não costumam conviver na linguagem corrente já sinaliza o estranhamento poético do nosso autor, ao reimantar ponteiros da cultura clássica. De fato, o sintagma inesperado “saliva catástrofe”, do segundo verso, faz o leitor notar: elementos sintáticos foram dali subtraídos, gerando-se concisão e um valioso desnorteio. Bem-observado, aliás, o primeiro dístico figura desvinculado de uma lógica simples, constituindo-se então um nítido anacoluto. Dois versos depois, um tal teor sugestivo contrapõe-se ao dizer tradicional e, assim, concentra toda a expressão adverbial (“Na sólida transparência das águas”) numa profusão semântica. Entre as interpretações possíveis para o referente desse verso, por exemplo, a noção de “gelo” flutua como um iceberg, mas os sentidos submersos ocupam um volume bem superior, na imaginação hermética. A mesma pluralidade hermenêutica faz-se possível quando Alípio investe na brevidade aguda, com um poema composto por três versos e animado pelo sopro da trouvaille e da boutade:
Helena
Quem vê Kóre
Não vê
Coração
Kóre, na tradição helênica, significa, em caráter amplo, “jovens”, “donzelas”; porém, mais especificamente, faz referência às estátuas representando jovens ou donzelas – opacidade, portanto, que transmuda a metáfora proverbial em literalidade. A paronímia com a palavra portuguesa (cara/Kóre) é o ingrediente nuclear para que o lúdico, tão presente na criação alipiana, ganhe forma.
Na esfera musical, por sua vez, o autor dialoga, há décadas, com as mais diversas genealogias – fazendo-se parceiro de artistas portugueses, alemães, brasileiros, ianques, italianos e tantos mais. Com um jazz arrojadamente experimental, sob a tônica do improviso em largo impulso – e no qual Armando Lobo, John Coltrane e Erik Satie podem comungar e dispor novos temperamentos –, é notável o quanto Alípio faz a nitidez conviver com a distorção, promovida já no uso heterodoxo da palheta de seu saxofone. As sequências melódicas elencadas na tradição do próprio jazz serão, em sua pauta, recursivamente formuladas pela trilha das dissonâncias, e o ouvinte verá seu horizonte de expectativas, a um só tempo, frustrado e acrescido.
O labor da tradução, nas mãos de Alípio Carvalho Neto, configura-se uma extensão de sua versatilidade. Pesquisador assíduo de formas e linguagens, ele nem poderia contentar-se em manejar o idioma helênico apenas em suas feições de 30 séculos atrás. O olhar alerta para as renovações verbais o leva a captar as frequências contemporâneas, na dicção de um Agrafiotis, poeta em franco diálogo com as vanguardas brasileiras. Por isso, os versos gregos, transcriados por Alípio, servem bem de síntese ao que este polímata experimental busca, sem descanso, na selva oscura da imaginação:
no subsolo da glória
como
não
a última edição
ainda
não
a definitiva versão.
Peron Rios é poeta e professor, membro da Academia Pernambucana de Letras, autor de A espiral crítica