"Secos e turvos", de Alexsandro Souto Maior, faz uma releitura poética de "Os Sertões"

Com 112 páginas e dividido em cinco capítulos, Secos e Turvos traduz de forma lírica a luta do beato e da comunidade de Canudos contra a fome e a seca nordestina

A Guerra de Canudos, conflito armado entre uma comunidade religiosa e o Exército brasileiro, e o missionário Antônio Conselheiro, líder do movimento popular que terminou com milhares de sertanejos mortos, ganha um novo cantar, nos versos do escritor e dramaturgo olindense Alexsandro Souto Maior, em Secos e turvos, livro de poemas publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que chega aos leitores neste mês de dezembro.

Os poemas de Secos e Turvos ecoam a paisagem seca do Sertão, a luta entre o homem e a terra árida, a esperança que caminha lado a lado com os sertanejos. Um exemplo é esse trecho do verso de abertura do livro, Imagem Primeira: “Se lançarmos/ o nosso olhar para os confins/ há sertões/ veredas estreitas/ um povoado ali/ outro acolá/ desolados/ enrugados/ cabecentes para cima/ à espera/ de algum mísero milagre/ ou mesmo uma rima/ tudo isso demora/ mas chega, chega”.

Com 112 páginas e dividido em cinco capítulos, Secos e Turvos traduz de forma lírica a luta do beato e da comunidade de Canudos contra a fome e a seca nordestina. A guerra ocorreu no interior da Bahia, de 1896 a 1897, no fim do século 19, na transição do regime monárquico para a República no Brasil. De acordo com Alexsandro Souto Maior, o conjunto de poemas que compõem o livro se conectam com Os Sertões (1902), o mais famoso relato da Guerra de Canudos, de autoria de Euclides da Cunha.

Secos e Turvos faz esse diálogo, agora minha referência não foi só Os Sertões, mas também Antônio Conselheiro. Apesar de buscar uma feitura de alegorias, de trazer a visão da imprensa do Rio de Janeiro naquela época, a maior referência é o documento científico, jornalístico, literário de Euclides da Cunha. Em tempo de embate de revisões históricas, a literatura também pode ser um espaço para não esquecer desse ‘absurdo glorioso’, desse genocídio promovido por um Brasil oficial, republicano”, declara o autor e mestre em Estudos Literários.

Secos e turvos estabelece uma intertextualidade com a obra de Euclides, assinala Alfredo César de Melo, professor de literatura brasileira, na apresentação do livro, como a estrutura que espelha Os Sertões, dividida na tríade "A tera", "O homem" e "A luta", que se passam a se "Da terra", "Das gentes", "Das lutas", "um movimento similar ao de Euclides, no qual a terra agreste serve de palco para uma humanidade destemida e intensa, cujos dramas existenciais são tão diversos e profundos quanto as paisagens que habitam".

A organização dos versos em contornos e ziguezagues nas páginas do livro dialoga com a temática dos textos. “Hoje, vejo a poesia para além dos versos comportados. Muitas vezes não enxergo o verso e nasce outra possibilidade de falar com os vazios da página. Em Secos e Turvos, senti muito a necessidade de usar a quebra da palavra, a quebra do verso como aliados nessa construção fragmentada, destroçada de um povo. Ora vejo as palavras duras como pedras ali distribuídas, ora vejo o rio da nossa história correr sofregamente”, comenta Souto Maior.

"A figura de Conselheiro em Os Sertões é central para a narrativa de Euclides, um líder carismático que une os sertanejos em torno de uma fé que desafia a racionalidade republicana. Em Secos e turvos, Conselheiro também aparece como uma figura mítica, ou melhor, uma ruína do imaginário histórico, quase fantasmagórica, que ecoa nos versos e nas paisagens, como se vê no poema A caminho de Monte Santo: Dez escaldantes verões/ sucederam-se sobre/ aquela cabeça ignota/ Conselheiro aparecera/ nos confins da Bahia/", analisa Cesar Melo, "A intertertextualidade, porém, não se limita à figura de Conselheiro; ela se exapande para abranger todo o ethos do Sertão, como um espaço de resistência e transcendência".

“Voltar aos grandes fatos históricos, muito estudados e debatidos, sempre requer um exercício de olhar criterioso. Secos e turvos percorre paisagens e retoma personagens caros à literatura brasileira, mas o faz sob uma perspectiva lírica e visual particular, fruto de anos de pesquisa do seu autor. No processo editorial, tentamos buscar formas de traduzir a atmosfera do livro também nas decisões gráficas, investindo em um acabamento mais poroso para a capa, que remete ao seco, à aridez”, observa a editora assistente da Cepe, Gianni Gianni.

Sobre o autor - Alexsandro Souto Maior é professor, graduado em Letras, especializado em Literatura Brasileira e mestre em Estudos Literários. Publicou seus primeiros poemas na década de 1990 nos jornais O Pão e Diário do Nordeste, do Ceará, e é autor de A Seiva (2019), livro de poesias que recebeu menção honrosa pela Academia Pernambucana de Letras. É também ator e diretor de teatro. Como dramaturgo, venceu o Prêmio Literário Cidade de Manaus, com a peça Mariano, irmão meu (2011), o Prêmio Ariano Suassuna, com as obras Tempo de Flor (2018) e O misterioso casarão de dona Niná (2020), entre outros.

Trecho do livro

I. Imagem primeira


“A cancela do Sertão
                               abre-se sobre um socalco
                                                                  rochoso

admiravelmente

árido,
          opaco
                    e vário
                              Ao longe
                             uma cortina de poeira
                             avermelha
                             o dia”

“a luz crua
violenta as pedras
e todos são pedras
fortemente
uma boca plena de saliva
contrasta com uma língua seca
como uma lâmina áspera
pronta para sucumbir os fraturados
                                                    os enjeitados, os fracos
                                               Mas os sertanejos
                                               são, sobretudo, pedras
                                               O céu está longe!”