Nova autobiografia aborda a última década de Marcelo Rubens Paiva

Em O Novo Agora, escritor que ajudou Brasil a ganhar o Oscar com a adaptação de Ainda Estou Aqui para o cinema, fala sobre a experiência de ser pai, a morte da mãe o o governo Jair Bolsonaro

No livro O Novo Agora, Marcelo Rubens Paiva relata a experiência e a delícia de ser pai após os 50 anos
No livro O Novo Agora, Marcelo Rubens Paiva relata a experiência e a delícia de ser pai após os 50 anos

O escritor Marcelo Rubens Paiva é autor de muitas proezas literárias e pessoais. Com o livro Ainda Estou Aqui (2015), cuja adaptação cinematográfica fez o Brasil conquistar o seu primeiro Oscar, foi capaz de homenagear a mãe, Eunice Paiva, e denunciar as torturas e a morte do pai Rubens Paiva, cometidas pela ditadura militar. Décadas antes, em 1982, com Feliz Ano Velho, contou ao Brasil o impacto do acidente que lhe deixou tetraplégico, quando aos 20 anos saltou de um pedra em um lago e fraturou a quinta vértebra cervical. Agora, ele volta à cena com o terceiro volume da sua autobiografia, igualmente atribulada. Em O Novo Agora, o escritor expõe os últimos 10 anos de sua vida, misturando alegria e dores presentes e passadas.

O terceiro livro desse relato pessoal é menos pesado que os anteriores, mas Marcelo não abriu mão de expor tudo que experimentou: a vida desregrada e boêmia que levava nos bares e boates de São Paulo nos anos 2000;  o encontro com uma nova companheira, a filósofa e figurinista Silvio Feola, com quem teria dois filhos - Loirinho e Moreno -; a perplexidade e a experiência de ser pai depois dos 50 anos; a morte da mãe Eunice;o boicote e a perseguição do governo Bolsonaro; a separação da mulher e a pandemia.

O livro inicia com o escritor correndo com a esposa para a maternidade e presenciando o parto de Joaquim, o loirinho. Depois,  a experiência e o deslumbramento de tê-lo dentro de casa, de partilhar seu nascimento. Apesar da novidade, o autor não deixa, em praticamente todos os momentos da história, de pensar em seu pai que não teve a oportunidade de conhecer os netos; de mostrar aos filhos a estátua do ex-deputado Rubens Paiva para que eles se orgulhem do avô, de fazer referências sobre quanto a tortura e assassinato do pai lhe custou pessoalmente.

Marcelo chega a narrar, inclusive, uma visita ao Rio em que levou o filho para “admirar” o avô. “Fomos de táxi com o bebê Loirinho conhecer o busto do vovô Rubens, na Tijuca, em frente ao prédio do Exército em que ele, minha mãe e minha irmã foram presos. Elas foram soltas, ele morreu no segundo dia de tortura…Eu olhava o busto, emocionado. Com Loirinho no colo, mostrei seu avô…Tentava ali me entender com as emoções: ódio, dor, tristeza. A pergunta que me fiz a vida toda reverberava: por quê? Precisava?”.

Apesar das memórias tristes sobre o pai, Marcelo viveu profundamente o nascimento dos seus filhos, Joaquim e Sebastião, que têm dois anos de diferença entre eles.

“O mundo infantil invade a vida de jovens pais. Filmes, livros, roupas, programas de TV, brinquedos, de preferência educativos e sem pilhas. É preciso checar aquilo que pode ser engolido, um dos maiores pavores, além de arrumar berço, carrinho, babá eletrônica, remédios, pomadas, fraldas, chupetas e mamadeiras. Por outro lado, a jovem mãe via as amigas no Insta, todas solteiras sem filhos, e sentia que perdia a vida.”

Marcelo percebe o cansaço da mulher e tenta, principalmente espelhando-se nas experiências de infância, tornar-se  um pai melhor e mais próximo aos  filhos. O que consegue parcialmente, apesar das constantes viagens, da agenda de cursos, palestras e lançamento do livro Ainda Estou Aqui, da vida social vivida com menos intensidade, mas ainda praticada pelo escritor.

A partir de um momento, Marcelo celebra as belezas da paternidade, mas atesta que o grande preço da criação dos filhos recai sobre a mulher. Por isso, após seis anos de casamento e parceria, foi comunicado que seria deixado por sua mulher, que alugara um apartamento próximo de onde a família morava para tocar sua vida e profissão de figurinista. Ou seja, Sílvia saiu de casa e deixou a responsabilidade para o marido Marcelo, após anos de dedicação exclusiva aos filhos. Era a vez dela respirar.

O choque da separação foi duplamente sentido pelo escritor, que não só perdeu a mulher que gostava, como teve que cuidar dos dois meninos praticamente sozinho. “Com os filhos, coloquei pra dormir, fiz companhia, contei histórias, brinquei. Mas foi pouco? Sempre é pouco. Para o homem, sempre é pouco. Meu mundo era outro planeta. O que para mim era muita ajuda, para ela deviam ser migalhas. Ela sempre fez muito mais…Nosso casamento foi lindo. Era tudo tão lindo no começo.”

Com o fim do casamento, Marcelo narra exatamente como entrou em pânico. “Ficar sozinho com os dois bebês completamente dependentes e uma mãe que agora morava a duas quadras. Banho, banheiro, comida, mamadeira, lanches, lancheiras, reuniões na escola, médicos, dentistas, vacinas…A febre da madrugada. Por outro lado, eu estava sozinho numa vida em que não poderíamos ter excessos…No primeiro ano, fui um pai ruminante, observador, emocionalmente instável, me inspirando em coisas certas e erradas da minha educação e exemplo de amigos.”

No meio dessa perda imensa, outra maior: a morte de Eunice Paiva, a mãe homenageada no livro Ainda Estou Aqui. Sua morte aconteceu em 13 de dezembro de 2018, semanas antes da posse de Jair Bolsonaro e no dia em que o AI-5 completaria 50 anos. À época ela morava no bloco vizinho ao apartamento de Marcelo, e já carregava o Alzheimer há 15 anos.

“Minha maior satisfação foi ver no Jornal Nacional uma matéria grande sobre minha mãe, e só uma menção aos cinquenta anos do AI-5. E ouvir o apresentador da Globo News dizer que morria uma brasileira atenciosa, sempre lúcida, que sempre atendeu bem à imprensa: uma democrata.”

No velório e enterro, apareceram amigos de várias épocas e décadas. “Eu me emocionei…Mãe, você está sendo carregada por dois punks, dois pós-punks, um trotskista, comunistas diletantes, poetas, boêmios, até por um palhaço dos Parlapatões.”, descreve um Marcelo emocionado.

Mas a separação e a morte da mãe seriam só duas das facetas das suas dificuldades. Se emocionalmente estava mal, sua vida financeira e profissional tornou-se um tormento por causa da chegada do governo Jair Bolsonaro.

“O jornalismo impresso entrava em crise, o novo presidente odiava minha família e tudo que representávamos, e meu nome foi boicotado…O ódio de Bolsonaro contra meu pai e minha família vinha de longe. No dia 14 de abril de 2014, inauguraram um busto de meu pai num salão do Congresso Nacional…Durante a solenidade, um então desconhecido deputado cercou minha família e passou a cuspir no busto. Descobrimos quem era depois: Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos, que se deu ao trabalho de vir em nossa direção gritando que “Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo.” Só depois do episódio, que deixou a família estarrecida, Marcelo descobriu o motivo de tanta violência.

Bolsonaro era oriundo do Vale da Ribeira, região onde a família Paiva mantinha um sítio. O ex-presidente acusava Rubens Paiva de ter dado “local e meio” para Carlos Lamarca (guerrilheiro também morto pela ditadura militar) “criar um foco de guerrilha” na região.” O que é mentira, segundo Marcelo, pois a tal propriedade familiar dos Paiva fica bem distante de onde Lamarca teria efetuado ações.

Além do ódio político, ainda havia o pessoal. Filhos do ex-presidente da República  afirmavam ter sido esnobados por Marcelo quando criança. “Um dos filhos de Bolsonaro, na biografia que escreveu do pai, conta que eu o esnobava na praça em Eldorado, tomando picolé e jogando o palito no chão, e que eles e os amigos corriam, pois, se fossem palitos sorteados, teriam a chance de ganhar picolés. Bolsonaro é seis anos mais velho do que eu. Será que ele me confundiu com meus primos?”, questiona-se o escritor.

Em decorrência dessa contenda, Marcelo passou a ser boicotado pelo governo.  Projetos com fomento federal passaram a ser negados. Amigos que o chamavam para trabalhar, tiravam seu nome dos roteiros, cartazes, fichas técnicas, caso contrário, não conseguiriam promover seus trabalhos. Várias vezes Marcelo atuou em projetos sem ter seu nome divulgado.

Com a falta de espaço e oportunidades, o escritor chegou a se desesperar. Mas foi “salvo” por um amigo, o também escritor pernambucano Marcelino Freire.

“O Instituto Barco dava aulas presenciais de artes, literaturas, roteiros e me convidou para dar um curso de literatura. Insistia. Eu relutava, não saberia ensinar. Até que Marcelino Freire, amigo, poeta e professor tarimbado, me convenceu num almoço. Era trabalho, seria bem remunerado… Marcelino foi convincente: você não vai ensinar nada, mas contar como escreveu, é isso que querem saber. Então eu deveria, em quatro aulas, abordar como foi a criação de quatro livros.”

As aulas on-line ajudaram Marcelo a sobreviver durante o isolamento da pandemia da Covid-19. “Comecei a dar aulas on-line. Carla (uma nova namorada que surgiu no período) montou um site, o Bora Saber e chamei diversos amigos escritores, roteiristas, cineastas, atores, economistas, jornalistas, isolados em casa, para dar cursos… De uma certa maneira, na minha vida, a pandemia passou voando.  A vida boêmia foi substituída pela vida online. Fizemos bem aos alunos e especialmente aos professores, que ganharam uma grana e se ocuparam.”

No pós-pandemia, a vida de Marcelo já havia recuperado um certo equilíbrio. O seu livro Ainda Estou Aqui já começara a ser adaptado para o cinema, as aulas on-line geravam um dinheiro certo, a ex-mulher tinha arrumado um novo companheiro e tido uma filhinha - que convivia bem com os irmãos - e Marcelo também já tinha entrado em nova parceria amorosa, amadurecido, e dado a volta por cima, mais uma vez.

No fechamento da história, um otimista Marcelo deixa um relato que reflete bem essa trajetória. “O mundo do futuro será o mundo deles, e se minha mãe teve um avô anarquista fugitivo da Itália, se tive um pai exilado e morto no Brasil, se tive uma mãe que desenvolveu Alzheimer aos 74 anos, se meus filhos tiveram um pai cadeirante, essa será a história deles, irão se adaptar a ela e terão seus transtornos, como todo mundo. Minha mãe jamais imaginou que eu viraria o que virei. Jamais acertarei o que meus filhos virarão. O mundo é deles. O mundo é complexo. O mundo é terrível e belo, tem luz e trevas. O mundo é um mundo de coisas.”

O Novo Agora
Marcelo Rubens Paiva
Editora Alfaguara
271 páginas
R$ 79,90