Carrero, Machado e Clarice: a saudade que ficou

No terceiro dia da série sobre mães e filhos, trazemos escritores que foram impactados pela morte precoce de suas mães

O pernambucano Raimundo Carrero mostra a foto dos pais e destaca: a mãe Maria Gomes de Sá, que faleceu quando ele tinha 10 anos, era uma mulher excepcional
O pernambucano Raimundo Carrero mostra a foto dos pais e destaca: a mãe Maria Gomes de Sá, que faleceu quando ele tinha 10 anos, era uma mulher excepcional

A relação entre mães e filhos sempre deixa marcas. Inclusive as provocadas por ausências. O que não diminui o amor nem a saudade. Dona Maria Gomes de Sá conviveu apenas dez anos com o filho Raimundo Carrero, a quem deu à luz em 1947, e o deixou órfão, vítima de leucemia, em 1957.

 A ausência dessa mulher sertaneja do Cariri cearense, que Carrero descreve como “a melhor mãe do mundo, a mais amada, a mais querida”, está prestes a completar sete décadas. “Mas a dor de perdê-la é tão grande quanto o amor que se mantém aceso”, diz o escritor pernambucano, para quem dona Maria permanece viva.

“Tudo de bom que tenho na minha vida veio da minha mãe. Quando eu tinha oito anos, ela me levou na Banda Filarmônica Paroquial de Salgueiro para que eu estudasse música. Sempre estimulou o que eu gostava, meu lado artístico. Certa vez, uma irmã minha retornou da escola e eu não. Ela perguntou o motivo. Soube que eu estava de castigo. Foi na sala de aula e disse à professora: “Meu filho vem para a escola para estudar, não para ficar de castigo. Isso quem decide sou eu.”. Dona Maria pegou o filho pela mão e o levou para casa.

“Ela é meu referencial, cada mãe que descrevo é, em certa medida, a minha própria mãe”, confessa Carrero, tão religioso quanto dona Maria. Esse amor filial, contudo, não o levou – ainda – a escrever um texto especificamente para ela.

Considerado por muitos o maior escritor brasileiro, o carioca Machado de Assis também teve a infelicidade de perder a mãe cedo. Imigrante dos Açores, Maria Leopoldina casou-se com o pintor de paredes e decorador Francisco José de Assis e foram morar no Morro do Livramento. Tiveram um casal de filhos. Mas, aos dez anos, Machado ficou órfão de mãe e já havia perdido a irmã. Foi morar com uma madrinha e, depois com o pai, que havia contraído segundas núpcias.

Contudo, a figura materna marcou sua formação e aparece em várias obras. Muitas de suas personagens femininas mais marcantes são mães, como D. Glória, em Helena.

A influência de Maria Leopoldina pode não estar em cartas e memórias diretas, mas reverbera na sensibilidade social e no olhar atento aos dramas humanos e na compreensão profunda da psicologia que marcam a obra de Machado.  Assim como sua mãe, muitas personagens machadianas frequentemente enfrentam dilemas relacionados à posição subordinada que ocupavam na sociedade de então.

Sombra

A escritora.Clarice Lispector, por exemplo, perdeu a mãe, Mania Lispector, ainda na infância, vítima das complicações de uma esclerose múltipla. Pode-se afirmar que a dor dessa perda permeou toda a sua literatura.

Os motivos para essa ferida na vida de Clarice são bem reais. Supõe-se que a doença tenha sido deflagrada quando Mania foi vítima de estupros durante pogroms antissemitas na Ucrânia, especialmente no contexto da Guerra Civil Russa, entre 1917 e 1921.  Foi exatamente para buscar um local mais seguro e uma cura para a doença, que a família Lispector emigrou para o Brasil.

Esse trauma familiar - a dor profunda de uma mãe violentada e doente - é considerado por muitos estudiosos como uma sombra que paira sobre a literatura de Clarice. A culpa, a fragilidade do corpo, o silêncio, a ruptura de linguagem e da identidade são temas recorrentes em seus textos e podem ser vistos, em parte, como reflexos simbólicos desse passado.

Muitos críticos apontam que sua escrita, intensa e existencial, pode ser lida como uma tentativa de reconstruir essa ausência e dar um novo sentido à maternidade. Em seus contos e romances, a figura da mãe aparece, quase sempre, envolvida em silêncio, fragilidade e mistério.

Vale a pena lembrar que Clarice nunca escreveu sobre a violência vivenciada pela mãe de forma explícita. As leituras sobre essa influência precisam ser feitas com cuidado, respeitando as camadas de silêncio e subjetividade que envolvem sua obra e sua vida.