Bandeira, Antônio Maria e Proust: os "menininhos" das mamães

A partir deste domingo, dia 4, até o Dia das Mães, no dia 11, a Pernambuco vai publicar, diariamente, uma matéria mostrando a influência das mães na trajetória literária dos filhos escritores

Devido aos problemas de saúde, o poeta Manuel Bandeira era mimado e paparicado pela mãe Francelina
Devido aos problemas de saúde, o poeta Manuel Bandeira era mimado e paparicado pela mãe Francelina

Ao longo da história da literatura, a figura materna é uma presença constante. Seja como figura acolhedora ou ausência dolorosa, as mães foram muitas vezes o ponto de partida emocional e criativo para a realização de obras que marcaram gerações. A influência delas vai muito além do cuidado e da criação: moldaram visões de mundo, despertaram sensibilidades e, em muitos casos, alimentaram o amor pela leitura e pela palavra escrita nos seus rebentos.

Para comemorar essa relação muitas vezes simbiótica, outras dissonante, a revista Pernambuco vai publicar, diariamente, a partir deste domingo (4), até o dia das mães (11), alguns relatos de como escritores de diversas nacionalidades se relacionavam com suas mães, e o impacto que essa convivência umbilical se externou nas suas obras.

Os exemplos são múltiplos. Engraçados, incentivadores, traumáticos. No Brasil, autores de muitas épocas e gêneros tiveram a mãe como inspiração. No Recife, alguns tiveram, até mesmo, a primazia de serem os queridinhos das mamães. Os mimadinhos.

Caso do cronista, poeta e compositor pernambucano Antônio Maria. Conhecido pela criatividade e frenética atividade boêmia, pela lista exuberante de mulheres, o jornalista coadunava a vida de bon-vivant com uma relação extremamente afetuosa com a mãe Diva, presente e evocada em algumas crônicas, a  quituteira de um menino glutão que chamava o filho para sair da chuva. Que estava sempre a paparicar-lhe.

Irônico e dramático, Maria escreveu uma crônica sobre seu nascimento. Hiperbólico, dizia que naquele momento, amorosamente, agarrava-se “a sua confortável mater, vivendo em desespero, os últimos dias do contato geral com o ser materno”.

Na crônica “A mesa do café”, Antônio Maria chega a escancarar que era o queridinho da mamãe. Desconfiava que isso acontecesse porque “era o mais feio”, o que jamais foi confirmado. “De pena não era. Porque pena é uma coisa, amor é outra.”

E vangloriava-se: “Minha mãe gostava mais de mim. Eu sabia, ela sabia que eu sabia. Em tudo nossa cumplicidade. Na fatia de bolo, na talhada de requeijão e no sobejo do seu copo d`água.”

Mesmo distantes um do outro, se encontrando “quando de raro em raro” ele ainda sentia a cumplicidade da mãe. Com humor peculiar e sentindo “o cheiro úmido da terra molhada, mais do que o das pálidas rosas da minha infância”, Maria chegava a se comparar a Diva. “Minha mãe e eu. Nossos olhos tão parecidos. Minha mãe só tem um defeito. Não ser minha filha. Sempre foi metida a saber mais do que eu.”

Outro pernambucano ilustre, o poeta  Manuel Bandeira se identificava com a mãe, Francelina Ribeiro de Sousa Bandeira, inclusive fisicamente. Na crônica “Minha mãe”, ele desfia as semelhanças e dessemelhanças, com um toque de ironia. “Sempre me acharam muito parecido com minha mãe. Só o nariz diferíamos. A semelhança estava sobretudo nos olhos e na boca. Sai míope como ela, dentuço como ela”.

Para Bandeira, a mãe “tinha o coração, já não digo na boca, mas nos dentes, e estes eram fortes e brancos, alegres, sem recalque: anunciavam-na. Moralmente julgo ser muito diferente dela, mas fisicamente sinto-me cem por cento dela, que digo? Sinto-a dentro de mim, atrás dos dentes e de meus olhos.” Foi a mãe quem transmitiu ao poeta os traços do avô, “que não estavam nela”. E, com ironia, constata: “Que grande mistério que é a vida! Minha mãe era espontânea, sabia o que queria, não era nada tímida: ótimas qualidades que não herdei.” Além de espontânea, alegre e batalhadora.

Bandeira herdou, ainda, da mãe, o gosto pelo diminutivo, artifício pelo qual “em minha poesia a ternura se trai quase sempre”. Por conta de seus problemas pulmonares – era tísico – a mãe e a irmã Maria Cândida tornaram-se suas enfermeiras, enchiam-lhe de cuidados e mimos. Os diminutivos eram postos em tudo que era para ele: “o leitinho de Nenen”, a “camisinha de Nenen”. “Porque ela me chamava assim, mesmo depois de eu marmanjo”.

Diminutivo também era o apelido Santinha, de sua mãe, Francelina. “Santinha é apelido que só parece bom para moça boazinha, docinha, bonitinha – em suma mosquinha morta, que não faz mal a ninguém. Minha mãe não era nada disso.”

A morte de D. Santinha, em 1916, o abalou profundamente, e veio seguida das mortes de Maria Cândida (1918), do pai, Manuel Carneiro (1920) e do irmão Antônio (1922). A ausência da mãe se tornou presença constante nos poemas, especialmente nos que falam da infância com doçura e saudades.

Em “Evocação do Recife”, a presença dela é sentida, sem ser nomeada. “A casa do meu avô com seus azulejos/E sua cor amarelada/A casa do meu avô/Onde nasci e me criei…”

Esses versos, que evocam o ambiente doméstico e a segurança da infância, remetem diretamente à presença materna. Além disso, o poeta cita “o cheiro das manhãs do Recife”, do “chão de tijolos molhados”, elementos que sugerem a presença silenciosa, mas essencial, de uma mãe cuidando de um lar.

À francesa

A mãe do francês Marcel Proust, Jeanne Weil Proust, é uma das mais intensas e influentes da história da literatura. Culta e apaixonada por livros, influenciou fortemente o filho a escrever.

Proust era tão exageradamente apegado à sua mãe, e vice-versa, que mesmo adulto se recusava a sair de férias sem ela. Era uma relação marcada por algumas tensões e ambiguidades, como numa passagem do livro Jean Santeuil, em que há uma briga de família – talvez por causa do homossexualismo do escritor, como especulado pelo crítico Michael Wood em Proust and his mother.

A morte de Jeanne, em 1905, mergulhou o escritor em luto. Só após essa perda ele se voltou com mais intensidade para a escrita de Em busca do tempo perdido, obra que, em muitos aspectos, é uma reconstrução memorialística da infância e, sobretudo, da relação com a mãe.

Uma cena icônica aparece logo no início do primeiro volume, quando menino Marcel implora por um beijo de sua mãe, que não pode no momento lhe dar a atenção que ele requer a cada dia.

“Eu subia para meu quarto com o coração apertado por ter que deixar mamãe. Nunca, durante aquele longo trajeto pelas escadas, deixava de me perguntar: ela virá me dar um beijo?... E se não viesse, meu mundo desabaria.”

Em uma carta escrita para Jeanne, esse amor e cumplicidade saltam aos olhos. “Minha mãezinha querida,você é para mim mais que uma mãe, é uma alma gêmea, é toda a minha vida. Não posso imaginar o mundo sem você. Cada pensamento está entrelaçado com sua ternura, cada alegria que sinto é porque sei que ela lhe dará alegria também…Não me abandone nunca, mesmo quando eu pareça distante, saiba que o meu silêncio é cheio de amor por você.”