A noite da manhã

Conto inédito de Guilherme Azabuja Castro, integrante do volume de contos "O viaduto mas íngreme do mundo"

Urubus circundam a cúpula da Igreja Matriz. Ao longe, são uma sujeira que se remove do céu em só desviar os olhos para o computador. De bichos, eram chamados ali. Mas quando Gabriel escolheu a mesa com vista, há tanto tempo, observava-os com ternura. Era outro, na época: profissional das palavras e das metáforas. Os urubus pousavam em dupla na proteção da sacada e às vezes um descia, avançava até a porta, bicava o vidro. Gabriel erguia os olhos da tela – como agora, subversivo – admirando a curiosidade ingênua da ave; igual à dele no primeiro ano de serviço público. Aí alguém resolvia tomar cafezinho e pronto, o bicho desaparecia. Seguia para o sul e girava, girava no céu do Centro Histórico. Depois retornava sem ressentimentos à proteção da sacada. Era verossímil aquele interesse? pergunta-se como se a pergunta fosse: é possível amar a burocracia? Para os colegas, os bichos eram um defeito na paisagem; seres de fora, que se afugenta, mas para ele eram de dentro, mortos arrependidos de terem morrido, e então a palavra mortos leva-o a resvalar da cadeira e seguir pelo assoalho até a porta – ali está o bicho, na sacada. Olham-se através do vidro. Gabriel se aproxima e o bicho não se move. Ali dentro os computadores teclam, os ares-condicionados vibram, um documento sai da impressora e Gabriel abre a fresta para enfim atravessar. Quando se levanta, no meio da sacada, o bicho voa para trás, juntando-se aos demais, que ocupam toda a proteção. Eles abrem as asas, um depois do outro, dezenove andares acima da Praça da Matriz, da copa dos salgueiros, da fonte em cuja água boiam folhas e baganas de cigarro, acima de pessoas esperando quem sabe mais um suicida. Mas nada disso Gabriel vê, porque as asas o encobrem e se entretecem criando uma noite em plena manhã. Então, solene, um chefe ou um sicário se desprende dos outros e começa a rodeá-lo rente à cabeça. Não, não há medo, esse sentimento comum, há o vento superior das asas, e um hálito a podridão de carnes mal digeridas, e dor, bicadas suaves de dor.

 

Serviço

O viaduto mais íngreme do Mundo - Guilherme Azambuja Castro

Editora: Zouk

páginas: 110 páginas

Preço: R$ 58

Orelha: Gianni Gianni

Quarta capa: Luiz Antonio de Assis Brasil