Fábula adulta "Os mistérios" traz de volta Bill Watterson, criador de Calvin & Harold

Quadrinista volta à cena depois de 30 anos com o lançamento da fábula adulta, em parceria com John Kascht

Em dezembro de 1995, o americano Bill Watterson comunicou o fim de uma das tiras mais famosas e bem-feitas das últimas décadas. Aposentou o menino Calvin e seu tigre Haroldo, deixando multidões sem entender os motivos do cancelamento da história. E sem dar explicações. Sempre reservado e igualmente sem fazer alardes, quase 30 anos depois, Watterson volta à cena, em parceria com John Kascht, com o lançamento da fábula adulta Os mistérios, publicada no Brasil pela Conrad. Um livreto que pode ser descrito como o oposto de Calvin e Haroldo, mas que ao mesmo tempo guarda algumas similaridades com o antigo projeto.

A proposta é sucinta. Com um texto curtíssimo, sugere uma mensagem filosófica sobre o planeta, seus rumos, nossos atos e as consequências que teremos com eles. Uma fábula que pode ser lida em menos de 10 minutos, e que apesar de concisa, mostra a velha preocupação do artista em suscitar reflexões e sentimentos sobre o que somos e para onde iremos.

As ilustrações são um caso à parte. Valendo-se apenas do preto e branco, da sombra e da luz para causar um impacto sombrio, às vezes intrigante, Os mistérios é de um refinamento visual que chama atenção: em formato quadrado, com capa e contracapa em tecido com colagens sobrepostas em verniz, é uma obra feita com extremo cuidado, um objeto artístico elaborado.

O processo do livro, segundo informa a Conrad, durou anos e misturou as técnicas dos dois artistas, resultando em algo totalmente novo e há anos luz de distância do jovial traço de Calvin e Haroldo.

Apesar de não terem sido fornecidos detalhes do seu processo de criação, Watterson e Kascht criaram figuras sinistras, nebulosas, com gravuras mistas, ora prevalecendo o desenho puro, ora imagens em 3D com fundo destacado. Essas imagens parecem ter sido feitas a partir de bonecos moldados, e em muitos casos, a sobreposição de tudo isso, como se  os personagens e as cenas fossem frutos de uma colagem, posteriormente fotografada. Um traço que remete à estética de Dave McKean, que assinou a arte de várias histórias de Sandman para Neil Gaiman.

De certa forma, o texto de Watterson não fugiu ao seu repertório de pensamentos curtos que redundam não em afirmações, mas em questionamentos. Nesta fábula para adultos, um antigo reino sofre calamidades inexplicáveis. Com o objetivo de acabar com o tormento, o rei envia seus cavaleiros em busca da causa dos misteriosos acontecimentos. Anos depois, um único e abatido cavaleiro retorna. Mas tudo muda, porém, quando um soldado finalmente captura um deles.

O alívio, porém, é momentâneo. Na narrativa vemos o avanço da humanidade a partir da captura dos mistérios, e o esquecimento, séculos depois, do que eles significavam. Então o medo volta novamente à tona, mostrando que sem respostas e sem aprender as lições, tudo a acaba nos assombrando outra vez.

Neste sentido, há uma similaridade com as histórias protagonizadas pelo hiperativo menino Calvin e seu parceiro, Haroldo. Nas tirinhas infantis, que na verdade se prestam para diversas idades - vide o sucesso mundial da dupla - questionamentos sobre a ética humana, nossas origens e nossos atos sempre foram o cerne das conversas entre o garoto e seu amigo. Por isso o sucesso provocado pelos personagens.

A dupla Calvin & Haroldo foi criada em 18 de novembro de 1985, data em que a primeira tira foi publicada em 35 jornais dos EUA. No primeiro ano, 250 jornais americanos já publicavam as histórias do menino de imaginação febril e de seu tigre de pelúcia. Não demorou muito, passou a ser publicada em centenas de outros periódicos mundo afora, efetivamente mudando como as tiras de jornal passaram a ser publicadas e formatadas, com edições encadernadas, que até hoje são lançadas e disputadas pelo público.

Os Mistérios | Bill Watterson e John Kascht | Conrad Editora | 72 página | R$ 119