Tenho na sala, pendurada à parede de ardósia, uma tapeçaria verdevermelha que trouxe da Guatemala, bordada por alguma Penélope índia, cujo motivo é a fecundação. Trata-se de um bicho cobrindo outro e ambos vomitando, do mesmo ato, oito figuras humanas. O desenho se repete – como a própria reprodução – seis vezes e, na sexta repetição, aparecem nove figuras humanas. Quebrando, com uma única assimetria, a perfeita simetria, a tela oferece o número oito (que – deitado – é o símbolo do infinito) e o nove (que – conforme Juan Heydon – “facilita os nascimentos” e – segundo W. Wynn Westcott – “quando multiplicado por qualquer número, sempre se reproduz: 9 x 2 = 18 e 8 +1 = 9”). Quando o poeta Mário Hélio solicitou, do meu único Diário de viagem (além dos fragmentos de outros) a página que anunciei, pelo jornal, sobre o escritor Juan Rulfo, comecei a compreender, da tapeçaria, o tema que se pluraliza, infinitamente, na parede da sala e, logo, a memória me apontou uma citação de Jorge Luis Borges: “Bioy Casares recordou que um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”.
Antes de reproduzir, do Diário inédito, o encontro com Juan Rulfo, em abril de 1985, transcrevo a noite anterior, para que o leitor – situando-se – perceba qual o meu estado de espírito, como viajante, durante o dilúvio de 40 dias e 40 noites, sozinho, por três países, em busca de dados para concluir um livro – Latinomérica – que só foi publicado, após muitas outras viagens, quando voltei ao México. Da mesma forma, copio um texto posterior do Diário, vivido na Guatemala, para fechar o círculo, como a serpente de Valéry olhando a cauda: “Como? Isso também sou eu?”
“LXVII – México – domingo, 28 de abril. Volto da Zona Rosa. No caminho, comparando os Estados Unidos e o México – o Grand Canyon e as pirâmides de Teotihuacán, os golfinhos de Miami e os miúras da tourada à espanhola, a Estátua da Liberdade e os murais de Rivera, Siqueiros e Orozco, as mulheres louras e as morenas – vi uma mulher que mendigava. Tirei do bolso uns pesos e, antes, próximo a ela, encontrei um menino de braços finos, com uma camisa ainda mais fina, encostado na parede, meio escondido, olhando nada, para se livrar do frio. Entreguei-lhe as moedas destinadas à mendiga e passei por ela de mãos vazias. Como a noite estava (por ser domingo) completamente deserta, pude chorar rua afora com pena daquele menino magro. Foi a segunda vez que chorei durante toda esta viagem. Chorei muito, limpando o rosto sempre, com medo de encontrar alguém. Chorei aquele menino. Houve o testemunho de Deus e da lua, meia, muito clara, sobre a cidade do México. Se Deus, o meu Deus, algum dia me der a voz do mar e do vento, falarei – como uma lembrança – daquele menino que, com seus braços finos, me puxou, da quase alegria, para o meu eterno sentimento de culpa. Nada – nem mesmo a maior manifestação que já vi em minha vida e que não vejo há 20 anos no meu país, a passeata de São Francisco, na Califórnia (onde chorei a viagem pela primeira vez) contra as cruéis ditaduras da América Latina – nada me causou tanta impressão como aquele menino na rua. Ele é a imagem mais viva que me ficou de todo o México. O México, para mim, é um menino pobre, de mãos nos bolsos, com frio. Aquele menino é maior do que Moctezuma, maior que Cuauhtémoc. Ele é a pedra mais frágil e mais forte de toda esta pirâmide humana.”
“LXVIII – México – segunda – 29 de abril. Estive com Juan Rulfo – no Instituto Indianista do México – foi um dos encontros mais agradáveis e estranhos que já tive. No início, o meu portunhol emperrou e ficamos mudos. Quando recuperei a língua, falei mais do que ele (que falou muito). Sobre o boom da literatura latino-americana, descartando todos os nomes esperados, a começar do seu, ele afirmou: ‘Mário de Andrade inventou o Realismo Mágico’. Sua afirmação, embora inusitada, endossou a minha tese de que o Brasil é o mais mágico de todos os países mágicos da América Latina. Parecíamos dois velhos amigos e tanto platicamos que acabei perdendo um encontro marcado com Carlos Fuentes. A prosa foi do Brasil ao México e, se às vezes tive a sensação de que ele era brasileiro, ele deve ter tido a impressão de que eu era mexicano. Não sei do que não falamos. Rulfo é um homem simples. Posamos várias vezes para a minha máquina fotográfica, que, talvez sabendo que ele é um grande fotógrafo, não quis acender o flash. Rulfo criticou alguns escritores latino-americanos, conterrâneos e contemporâneos, como pertencentes à ‘máfia’ dos ganhadores de prêmios, mas elogiou Carlos Fuentes. Findei dizendo que pretendia ir a Cuba, ou à Nicarágua, porém, recém-chegado dos Estados Unidos, estava tendo dificuldade em visar o passaporte e, para não perder o tempo, iria à Guatemala, em busca de uma lenda de Miguel Angel Asturias: a do pássaro quetzal. Ele me desaconselhou: ‘Não vá, a cidade – o país, sim – não é interessante. Além disso, a Guatemala está em pé de guerra, as pessoas desaparecem na rua e você não tem cara de brasileiro’. Era tudo o que a minha obsessão, principalmente desaconselhada, precisava para eu ir. Fico-me indagando, durante a noite neste Hotel Mallorca, próximo ao Monumento a la Madre – a la que nos amo antes de conocernos – neste país de tantos monumentos, por que Juan Rulfo me pareceu um escritor largado – como se tivesse que acomodar sua grandeza literária dentro da sua pequena estatura física – posto em segundo plano, quando, na verdade, é o maior escritor vivo da América?”
“LXIX – Guatemala – sexta-feira – 3 de maio. As ruas estão cheias de soldados – fardas, armas, viaturas – mas a cidade não me assusta. Já assisti a esse filme no Brasil, na Argentina, no Uruguai e no Chile. Aqui (êh, Hemingway – como diria Cortázar) pareço um correspondente de guerra. Aliás, aqui se deu – durante o golpe de Castillo Armas contra o governo Arbenz – a conversão político-guerrilheira do ‘Che’. Por meia hora, em uma praça, vi e ouvi um crente – de Bíblia na mão – pregando o evangelho. Ele falava de deuses menores e, apontando para uma estátua, dizia: ‘Como este aqui, que todos veneram através do tempo’. Tive a impressão de que o céu se abria à fala daquele homem pequeno que, mais do que eu, guardava a fé. Assim como o menino do México, aquele homem ficará, com aquela praça, aquele povo e aquele céu se abrindo às suas palavras”.
De volta ao Brasil, procurei uma entrevista em que o escritor uruguaio, Eduardo Galeano, respondendo a uma pergunta do tradutor brasileiro, Eric Nepomuceno (que conheci em Cuba) fala acerca de Juan Rulfo: “Eu não conhecia Rulfo (...) Acho que ele é o escritor mais importante da América Latina (...) Faz 20 anos que não escreve, desde o Pedro Páramo. Tudo o que ele escreve queima. Queimou um romance, coisas assim. E todo mundo sabe que ele não escreve. Mas ele mente e diz que tem um livro de contos pronto, mas que não tem tempo para revisá-lo (...) Perguntei (...) Mas por que não pede uma licença médica? ‘Não, eu não creio nos medicamentos, além dos mais, não gosto dos médicos’ (...) Mas vá a um médico e diga qualquer coisa. ‘Não posso... como vou chegar a um médico e dizer: estou doente, doutor. Sabe o que acontece, doutor? Estou triste. Ah, ele não me dá a licença’”.
Dezenove anos depois, diante da tapeçaria – a fecundação – comprada na Guatemala (de onde não desapareci na rua) chego à conclusão por que Juan Rulfo, depois de escrever dois livros que queimam na memória, ou na desmemória, da América Latina – Pedro Páramo e El lhano em lhamas – passou a queimar os demais livros que escrevia. Ele, descumprindo A parábola dos dez talentos, não multiplicou a sua obra. O verdadeiro autor jamais se conforma com o êxito de um ou dois livros, porém, ao contrário, ele começa a lutar contra tal sucesso, pois, quando produz algo posterior, que sabe ser melhor, mas que não obtém igual repercussão, passa, às vezes, a desdenhar o feito, por já ter feito mais. Ele se torna injusto com ele próprio, pela injustiça dos seus leitores. É o caso de Rachel de Queiroz e de João Cabral de Melo Neto com, respectivamente, O quinze e Morte e vida severina. Também é o caso, embora provisório, de Gabriel García Márquez, com Cem anos de solidão. Todavia, o que aconteceu com Rulfo foi ainda pior, porque não se tratou do fazer mais, ou a mais, mas do não fazer mais. Juan Rulfo “perdeu a sua águia” – como diria Coleridge – e adoeceu de tristeza. Até chegou a publicar um terceiro livro – O galo – que, mencionado na conversa, me pediu: “Não leia, é um livro menor”. Obedeci ao mestre desta vez: não comprei e não li nada dele que não fosse Pedro Páramo e El lhano em lhamas (que já antecipava as chamas). Tampouco, como nunca precisei do seu terceiro livro, tive a curiosidade de imaginar uma única folha, ou uma só palavra, das que se contorceram no fogo quando foram virando cinza. O que ele queimou, está queimado. Bastam-me os seus dois livros (posso relê-los) principalmente o último, que me foi dado por ele com uma dedicatória muito generosa para uma tarde, embora inteira, de prosa e de poesia: “Para el grand poeta, maestro y amigo Marcus Accioly, con toda la admiración y el afeto de Rulfo – México, D.F. 29 de abril de 1985”.
PS. Voltei ao México, entre novembro/dezembro de 2001, convidado por Eduardo Portella para XV Feria Internacional del Livro de Guadalajara – Jalisco. Estive no mesmo Hotel Mallorca. Não fiz nenhuma anotação. Recordo que foi no dia em que morreu o beatle George Harisson. Carlos Fuentes estava na Europa e Juan Rulfo já não estava. O México me fez novamente chorar.