Logo eu, escrever sobre Rulfo e Pedro Páramo?
Se Borges disse; “... es una de las mejores novelas de las literaturas de lengua hispánica, y aun de la literatura.”! E García Márquez, depois de receber o volume com a recomendação de Alvaro Mutis: “ – ¡Lea esa vaina, carajo, para que aprenda!” afirmou ter lido duas vezes numa noite a novela, e El Llano em llamas no dia seguinte. Ficou tão impactado como quando lera A metamorfose, de Kafka. Esse ano: “no pude leer a ningún otro autor, porque todos me parecían menores.”! Se a crítica é unânime em considerar sua obra como uma das naves-mães dessa frota invencível que foi o Boom Latino-americano, armado com o arsenal do Realismo Mágico...
Assim, escrever sobre Pedro Páramo é um bilhete para minha terceira viagem à Comala de Rulfo. De segunda classe, – não sei em qual páramo perdeu-se meu exemplar em papel, leio-releio no monitor. Duas décadas, ou mais, desde a minha segunda visita. E pela idade, agora mais perto da viagem para a minha própria Comala.
As descobertas são bem diferentes, mudam sim os nomes dos próprios fantasmas. A dor é a mesma. A vida e a morte são as mesmas. Já não consigo, como pretendi na primeira leitura, descrer da violência ancestral “estúpida” do homem, como ele a descrevia e tanto o incomodava, agora quando parecem renascer algoritmicamente.
Assim, necessitei visitar o homem. E ele está, YouTube mediante, na (tal vez) uma das piores peças da excelente série de reportagens de Joaquim Solar Serrano na TVE. Programa pelo qual desfilaram as melhores plumas, não apenas em língua castelhana: A fondo. Mas o instruído e bem-informado entrevistador (Rulfo chega a perguntar-lhe: ¿Cómo sabe usted tantas cosas?), perdeu-se num simples detalhe: Juan Nepomuceno Carlos Pérez Rulfo Vizcaíno é homem de muito nome, mas ao extremo sovina de palavras, erizável com o blablabá. E o ritmo da TV, ainda mais ao tentar massificar um fenômeno tão delicado como a cultura, num mundo a contramão, é caricaturizado pela pressa histérica, renhida com a reflexão.
Ainda assim, para sentir o Rulfo homem, sua resistência ao palavreio, a ‘humildade’ e ‘paciência’ de cavaleiro, (armadura para resistir ao contato com o mundo) resulta uma peça excelente. Poucas vezes aceitou esses ‘diálogos’.
Metade dos lábios do autor tentam, espreguiçando-se de sonho que não quer acordar, esboçar pensamentos sobre simples certezas que ele ‘não quer ter’. Se para quê? Qual? As palavras não saem, fogem entre as pequenas brechas das grades dentais porque, como confessara a Martín Caparrós: “me sé las preguntas, pero las respuestas no. Cada vez tengo menos respuestas”.
A inteligência está nos olhos, e no meio sorriso de discreta ironia, que aparece duas vezes. Não tem muito a dizer. Tem trabalhado. Com rigor perfeccionista. Duas obras preciosas de acabamento. Sua novela Pedro Páramo e seu volume de contos El Llano en llamas. Nos há legado neles a sua visão do mundo. Sabe que sua leitura não é estimulante, não traz boas novas. Porque:
-Este mundo, que lo aprieta a uno por todos lados, que va vaciando puños de nuestro polvo aquí y allá, deshaciéndonos en pedazos como si rociara la tierra con nuestra sangre.
¿Qué hemos hecho? ¿Por qué se nos ha podrido el alma? (JR/PP)
Faça-se a luz
Parte menos conhecida do seu legado, textos sem letras. Mas cada uma polida e elaborada como um poema aberto.
Em Paris, a fortuna me obsequiou com a bela amizade de Beatrice Tatard, bretã esportista de risco e estudiosa da cultura da América Latina. O vernissage do seu criterioso livro Juan Rulfo photographe : esthétique du royaume des âmes na editora L’Harmattan, em 28/09/1994 me permitiu entrar na outra poesia do silêncio deste artista mexicano. E a impressão que deixa do mundo, da paisagem mexicana e do homem, vibra na mesma frequência que sua prosa.
Porque poesia é o seu escamoteio de esclarecimento em Pedro Páramo e em El llano en llamas. Ele não instrui o leitor, ele mostra a vida construindo imagens. Para o exercício da finalidade evolutiva do que seja a alta literatura, o leitor tem que processar com a carne das suas experiências.
Muita coisa ainda vou compreendendo agora. Só nesta terceira viagem descubro toda a metafotografia presente em Pedro Páramo. Seu paisagismo plástico. Quase toda referência temporal e geográfica, centra-se nesses combates cotidianos da luz por postergar o dia, e da resiliência da noite antes de ser vencida pelos fótons diurnos. A luta cíclica humano-fotográfica dos dias e das noites. Esse balanço inevitável entre nossas poucas clarezas e nossas obscuridades, focos distorcidos.
Sua esposa da vida toda, registra isto no seu nome: Clara. À sua câmera fotográfica apelidou Clarita.
Cliquemos nestes trechos de Pedro Páramo:
“...aquella mujer, de pie en el umbral; su cuerpo impidiendo la llegada del día; dejando asomar, a través de sus brazos, retazos de cielo, y debajo de sus pies regueros de luz; una luz asperjada como si el suelo debajo de ella estuviera anegado en lágrimas.”
“Aclaraba el día. El día desbarata las sombras. Las deshace. El cuarto donde estaba se
sentía caliente con el calor de los cuerpos dormidos. A través de los párpados me llegaba
el albor del amanecer. Sentía la luz.”
“Mi madre me decía que, en cuanto comenzaba a llover, todo se llenaba de luces y del olor verde de los retoños. Me contaba cómo llegaba la marea de las nubes, cómo se echaban sobre la tierra y la descomponían cambiándole los colores...”
O gigante silencioso
O mercado, leitores deslumbrados, críticos famintos de novos pratos para degustar e criticar depois como chefs de programas de TV, cobraram insistentemente lançamentos outros do autor e/ou explicações do seu silêncio editorial. Deveriam?
Outros coscuvilharam criteriosamente os volumes que o nosso autor devorara nos livros que um bispo resguardara na casa da sua avó para impedir o confisco. Ou no orfanato (“correcional” nas suas palavras) onde a força de solidão, castigos e desamparo, adquiriu uma tendência à depressão que não lhe abandonaria. E argumentam encontrar cheiros de Faulkner, dos novéis nórdicos Kunt Hamsun e Halldor Laxness como possíveis temperos na sua culinária literária. O próprio autor não colocava energia em concordar nem no contrário. Pédro Páramo não é fácil de ler, necessita, no mínimo, três leituras, para poder entender esse livro. Foi intencional. Demorei muito até encontrar a estrutura, sem ela um romance não se sustenta, e o extraordinário é, justamente, que parece não tê-la.
A ideia brilhante, que permite a quebra temporal permanente, a mudança de voz narradora e os deslocamentos quase nunca indicados ou apenas sugeridos, coincide com uma marca telúrica. A relação coloquial com a morte. As tradições dos povos originários de comunicação com o inframundo refogada com os aportes católicos hispânicos de céu, inferno, pecados e purgatório. Essas entrelinhas entre o terrenal e o além liberam o autor da necessária precisão do espaço-tempo do relato. García Márquez esclarece: “Nadie puede saber, en realidad, cuánto duran los años de la muerte”.
O próprio Rulfo, depois de seu romance aceito pela crítica, afirmaria que a obra está: «Construida de silencios, de hilos colgantes, de escenas cortadas, donde todo ocurre en un tiempo simultáneo que es un no tiempo».
Essa qualidade, devido à insegurança de Rulfo, poderia ter-nos privado para sempre da joia literária, convencido estava de que a aparente desconexão dos relatos a tornaria inviável. Seus amigos escritores, Antonio Alatorre e Juan José Arreola foram o apoio literário-psicológico que impediram que o autor continuasse rasgando quartilhas e eliminando peças do quebra-cabeças. Arreola conta que passou uma jornada com Rulfo, separando as diferentes quartilhas de cenas de Pedro Páramo e sugerido mudar a ordem de alguns episódios. Quando finalizaram essa montagem, lhe recomendou: “
‘Publícalo así, así es tu libro, ya no te atormentes más’”.
Vamos a Comala, então?
– Sim, todos estamos indo
O romance começa nos sujeitando para acompanhar a viagem de Juan Preciado na busca do seu pai, nas fugidias terras de Comala. Na forma como nos interpela e cumprimenta nosso cicerone, compreendemos o tipo de paisagens que vamos visitar: os nossos medos. Falando-nos coloquialmente esclarece que a viagem obedece a um pedido materno nos seus últimos suspiros: “Entonces no pude hacer otra cosa sino decirle que así lo haría, y de tanto decírselo se lo seguí diciendo aun después que a mis manos les costó trabajo zafarse de sus manos muertas.” Custará trabalho a nós, também, a partir destas linhas.
Caminharemos então ao lado de, seremos orientados por, compartiremos suores e decomposição na mesma cama que, acordaremos interrogados pelas, ouviremos trechos autobiográficos de, teremos acesso a confissões, penetraremos nos sonhos e alucinações de....
....Almas.
Quase todas em pena, ou ressuscitadas, ou revividas, para voltar a morrer. Ciclicamente amarrados à miséria, à fome, à violência, à crendice.
É bem possível que, em suas poucas entrevistas, nos seus dois livros fundamentais e nos milhares de negativos que produziu esteja tudo o que seu esforço acreditou ser a “sua verdade”. Nesses entretempos, exercia o único ofício que reconhecia, enquanto ganhava a vida com trabalhos diversos, já que “Para mí el único oficio es el de vivir”. Sustentou assim a sua família grande, sua esposa Clara, sua filha Claudia Berenice, y sus três Juanes, Francisco, Pablo e Carlos.
Os motivos de tanta dureza e sofrimento que habita suas páginas tem suas causas esclarecidas. Como o seu gêmeo de orfandade, e “próximo em ideias”, (Rulfo dixit) o peruano José María Arguedas, e tantos outros autores andinos, registra os abusos e a humilhação que sofrem os deserdados da terra, sempre em mãos de um punhado de vorazes:
Rulfo coloca uma metáfora terrível na boca de uma das personagens que “servem” na Media Luna, (na Casa Grande):
Hacía tantos años que no alzaba la cara, que me olvidé del cielo. Y aunque lo hubiera hecho, ¿qué habría ganado? El cielo está tan alto, y mis ojos tan sin mirada, que vivía contenta con saber dónde quedaba la tierra.
Esta terra, também personagem sofrida nos seus textos, é usufruída por uns poucos homens corridos do seu gênero pelos métodos usados para possuí-la:
“Y sin embargo, padre, dicen que las tierras de Comala son buenas. Es lástima que estén en manos de un solo hombre. ¿Es Pedro Páramo aún el dueño, no?
-Así es la voluntad de Dios.
-No creo que en este caso intervenga la voluntad de Dios. ¿No lo crees tú así, padre?
-A veces lo he dudado; pero allí lo reconocen.
-¿Y entre ésos estás tú?
-Yo soy un pobre hombre dispuesto a humillarse, mientras sienta el impulso de hacerlo.”
O pesado legado da religião
Como Borges, descria do Deus dos templos e corporações religiosas. Deuses cheios de poder, ameaçadores, punitivistas. Claramente o texto expõe o poder imobilizador do catolicismo. O sentimento de culpabilidade coletiva e individual, e a impossibilidade de se confessar e obter perdão, ou alguma fagulha de esperança de tranquilidade ou paz final permeia o verdadeiro ‘calvário’ de todo o elenco rulfiano.
O padre Rentería escuta do seu superior:
“¿Qué has hecho de la fuerza de Dios? Quiero convencerme de que eres bueno y de que allí recibes la estimación de todos; pero no basta ser bueno. El pecado no es bueno. Y para acabar con él, hay que ser duro y despiadado. Quiero creer que todos siguen siendo creyentes; pero no eres tú quien mantiene su fe; lo hacen por superstición y por miedo”.
O como exprime Susana: “Qué crees que es la vida Justina, sino un pecado”. Para logo renegar de qualquer crença no céu, “yo sólo creo en el infierno”.
As cavilações do padre Rentería (seu nome soa a renda?) mostram esse jogo duplo de serviço ao poder, simulando uma ação de apoio ao sofrimento humano. Outro detalhe interessante é observar que esta personagem oferece uma porta narrativa da multiplicação, não dos pães, mas de vozes narrativas, graças à revelação das confissões dos diferentes estamentos de poder da região. Seguramente, Scorza percebeu estas vantagens de traficar informação nos relatos; e o padre Chazán, de sua pentalogia La guerra silenciosa, lhe renderá excelentes resultados narrativos e estilísticos, emprestando-lhe ‘os segredos confessionais’. Também os mortos que falam no cemitério do final de Redoble por Rancas homenageiam as conversações de Juan Preciado, Dorotea e Susana em Comala.
Prefiro que seja Arguedas, o único escritor que Rulfo menciona espontaneamente e com afeto, quem o define como existencialista e o diferencia dos outros que:
“gemiquean, rebuscan con las uñas en la desesperación; Rulfo levanta con sus poderosas manos la luz de la muerte y el germen inagotable que hay en el hombre aun cuando este parece haberse convertido aparentemente en carroña”
E transcreve, em seguida, a cena em que Bartolomé San Juan, padre incestuoso de Susana, a faz descer num profundo poço da mina, amarrada na cintura por uma corda, a remexer entre os ossos lá embaixo enterrados. No que representa a ‘descida aos infernos” do drama, mas também, uma desgarradora metáfora das motivações profundas do choque cultural da conquista da América Latina. Susana, apavorada pela obscuridade e pela arriscada operação, na fraca luz da tocha lá em cima, encontra uma caveira e mais ossos, mas a voz do seu pai insiste: “Busca algo más, Susana, dinero. Ruedas redondas de oro. Búscalas, Susana.”
Resulta quase redundante afirmar que Juan Rulfo fez um enorme esforço por viver ou por se manter vivo e produtivo. Que perseguiu com toda a sua inteligência preservar alguns espaços de “tranquilidade”, alguma proteção contra a agressividade do mundo que o mordeu com força desde muito cedo. Buscava talvez esse colo que, na ilusão do amor, nos acalma, como na cozinha em que o menino Arguedas dormia sob a proteção amorosa das indígenas da Casa Grande. Rulfo escreve a Clara: “Yo pondría mi corazón entre tus manos sin que él se rebelara. No tendría ni así de miedo, porque sabría quién lo tomaba. Y un corazón que sabe y que presiente cuál es la mano amiga, manejada por otro corazón, no teme nada”.
Ou, no mesmo Pedro Páramo, encontramos o que seria o seu ‘paraíso perdido’:
“…. en la misma cama donde murió mi madre hace ya muchos años; sobre el mismo colchón; bajo la misma cobija de lana negra con la cual nos envolvíamos las dos para dormir. Entonces yo dormía a su lado, en un lugarcito que ella me hacía debajo de sus brazos.(…) Creo sentir todavía el golpe pausado de su respiración; las palpitaciones y suspiros con que ella arrullaba mi sueño...” (…) Creo sentir la pena de su muerte...
Pero esto es falso.
Estoy aquí, boca arriba, pensando en aquel tiempo para olvidar mi soledad. Porque no estoy acostada sólo por un rato. Y ni en la cama de mi madre, sino dentro de un cajón negro como el que se usa para enterrar a los muertos. Porque estoy muerta”.
Ecoa a letra de outro grande das páginas deste Sul que o tinha em grande estima:
“El mundo nada podría contra ti, el mundo nada puede contra un niño que duerme en el regazo de su madre.” Ernesto Sábato, Sobre Héroes y Tumbas.
O primeiro conto que Rulfo publicou levava por título “La vida no es muy seria em sus cosas.”