"Vim para Comala porque me disseram que meu pai morava aqui, um Pedro Páramo.”
A sentença de abertura de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, entrega o enfoque da narrativa: a busca de Juan Preciado pelo povoado abandonado de Comala e a figura de Pedro, grande senhor daquelas paragens.
A adaptação chega às telas do serviço de streaming da Netflix no dia 6 de novembro, cercada de expectativas quanto ao modo como um dos mais célebres livros da América Latina será transplantado para o cinema. No passado, outras tentativas fracassaram, seja pelas escolhas dos realizadores, seja pelo próprio peso da obra e as particularidades da sua escrita.
A nova versão, destaque do Festival de Toronto deste 2024, ganha vida pelas mãos do mexicano Rodrigo Prieto, prolífico diretor de fotografia, responsável por trabalhos reconhecidos internacionalmente como O Segredo de Brokeback Mountain (2005), Babel (2006), O Lobo de Wall Street (2013), O irlandês (2019), e os mais recentes Barbie (2023) e o Assassino da Lua das Flores (2023). Além da responsabilidade por estar assinando o seu primeiro trabalho como diretor, Prieto precisa lidar com a incumbência de dar vida ao livro que é considerado um divisor de águas na literatura latino-americana.
Mas afinal, por que é um desafio adaptar esse livro ao cinema e onde foi que as tentativas anteriores naufragaram?
Antes de tudo é preciso situar a criação de Juan Rulfo como um texto vanguardista que abriu as portas daquilo que viria a ser chamado de Realismo Mágico, vertente literária latino-americana que tem como grandes exponentes Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, entre outros. Todas as principais características dessa escola estão presentes no texto do escritor mexicano: mistura do fantástico e do real, ambiente realista, elementos culturais e folclóricos, além da aceitação do extraordinário pelos personagens como algo rotineiro nas suas vidas.
Pedro Páramo foi o único romance escrito por Rulfo. Alcançou sucesso de público e crítica pelo seu formato inovador, pela sua estrutura narrativa não linear e pelas noções próprias da identidade mexicana, principalmente indígena, em relação à morte e à vida.
Diferente das tradições europeias que situam o fim da vida como um ponto de não retorno, os nativos mexicanos encaram o arrebatamento sem as correntes morais tão caras aos colonizadores europeus. Para os povos originários locais, os mortos e os vivos interagem, visitam uns aos outros e compartilham o mesmo ambiente. A importância desses fundamentos é tão grande, que é o alicerce da maior festa popular mexicana: o Día de los muertos. Esse panorama não escapou ao olhar preciso de Juan Rulfo, visto que a história se passa durante o período da canícula no Hemisfério Norte, temporada mais quente do ano, que ocorre no mês de agosto, período em que os aztecas originalmente celebravam os seus mortos.
Ambientado inicialmente em torno da busca de Juan Preciado por seu pai, no pequeno povoado de Comala, a narrativa vai adquirindo tons nebulosos, fazendo o leitor conhecer uma cidade fantasma, onde o murmúrio dos mortos conta as histórias esquecidas dos seus habitantes. A narrativa é composta por pequenos trechos, que se sobressaem no tempo e no espaço, e, aos poucos, vamos conhecendo os protagonistas da cidade. Muda-se então o eixo de Juan Preciado para a poderosa figura de Pedro Páramo, cacique daquele território, modelo similar ao coronel brasileiro, muito presente no período pré-Revolução Mexicana.
Ao longo dos pequenos fragmentos, vamos conhecendo uma cidade cheia de segredos, onde os seus moradores murmuram conflitos ainda pendentes de resolução, arrependimentos e rancores: todos entremeados pelo fio do despotismo de Pedro. Os sussurros que saem das brechas da cidade nos contam de amores perdidos, vinganças e tramoias, além de corrupção e mortes. Os habitantes falecidos de Comala parecem sempre ter algum assunto para resolver; o leitor é guiado pelas suas lembranças e, através delas, pinta um quadro de um povoado erguido sobre disputas ancestrais.
Situar o espectador diante de grande quantidade de trechos é justamente o desafio que Rodrigo Prieto, diretor da nova versão, precisa trabalhar. Transplantar para as telas um texto construído inteiramente na figura de linguagem da elipse, onde todo o cenário é construído a partir de pontos de vista é um desafio e tanto.
No cinema, essa fórmula já foi utilizada em outras ocasiões, na maioria das vezes para revelar o enredo e os caminhos de um personagem específico. Um exemplo é a utilização do Efeito Rashomon por Akira Kurosawa em Rashomon (1950), em que aborda uma situação através de múltiplas perspectivas. Os eventos adquirem diferentes formas dependendo de quem está falando. O mesmo acontece em Pedro Páramo, onde a cidade e o personagem do tirano são revelados aos poucos, por meio do rumor dos mortos. Outros filmes utilizam essa técnica, como Garota exemplar (2014), de David Fincher, Os suspeitos (1995), de Bryan Singer, sempre com a intenção de aumentar a tensão.
Fracasso retumbante
Os realizadores e produtores da nova versão de Pedro Páramo provavelmente aprenderam com as tentativas anteriores de transplantar o clássico para as telas, sendo a mais conhecida de todas o filme dirigido por Carlos Velo em 1967, estrelado por John Gavin, Ignacio López Tarso e Pilar Pellicer. No entanto, a superprodução não alcançou o sucesso esperado, vindo a ser um fracasso retumbante.
Vários motivos convergiram para isso, como a grande expectativa em torno da obra original. Outro fator foi a inexperiência do diretor, visto que Carlos Velo tinha lançado poucos títulos anteriores. Portanto, um projeto daquela envergadura era muito ambicioso, indo além das possibilidades do cineasta. Além disso, a escolha para o protagonista foi muito criticada pelos próprios atores e pelo público, já que Velo escolheu John Gavin, um ator “gringo”, para o papel principal. A intenção era, sobretudo, comercial, devido às conexões com a indústria hollywoodiana, e visando à bilheteria, já que um ator conhecido internacionalmente chamaria mais atenção para a produção.
O filme foi lançado num período de transição entre o Cinema de Ouro Mexicano e o Novo Cinema Mexicano. O Cinema de Ouro Mexicano durou da década de 1930 até 1967, data do lançamento do filme. No entanto, a adaptação foge das produções mais convencionais desse ciclo e está vinculada a uma nova etapa.
Todas essas considerações seriam irrelevantes se os roteiristas não tivessem feito péssimas escolhas. O roteiro escrito por Manuel Barbachano, Carlos Fuentes e Carlos Velo falhou em inúmeros aspectos. O principal foi a tentativa constante de simplificar uma narrativa complexa. Os escritores optaram por uma história linear, em que apenas passamos do presente para o passado, de Juan Preciado para Pedro Páramo, tirando assim as camadas que dão profundidade à história. Elementos do Realismo Mágico e seus simbolismos também foram tirados de cena.
Deixa-se de lado a sutileza, o fino acabamento da palavra de Rulfo, para atender a objetivos comerciais. Carlos Velo não abre espaço para interpretações, leituras diferentes. Limita-se à lógica cartesiana, metódica e racional das produções de estúdio voltadas ao grande público.
Eis o desafio de Rodrigo Prieto para a mais recente adaptação: potencializar um texto clássico, sem perder as características que o tornaram tão célebre.
O roteiro do filme é de Mateo Gil, responsável por assinar o roteiro de filmes como Vanilla Sky (2001), Mar adentro (2004) e Alexandria (2009), além de ser um dos principais parceiros profissionais do consagrado diretor chileno-espanhol Alejandro Amenábar. Seus filmes anteriores possuem estruturas narrativas singulares, mas nada comparado com o enredo de Pedro Páramo.
Prieto deixou claro, em entrevistas sobre o novo projeto, que sua intenção é que a obra represente o povo mexicano, no sentido de que ele considera o seu país natal uma mistura de raízes e raças. Além disso, deixou claro que o filme o faz explorar suas conexões com os fantasmas de gerações anteriores da sua própria família, assim como Juan Preciado fez quando chegou à Comala buscando seu pai, um homem chamado Pedro Páramo.
Outro aspecto da nova produção da Netflix que está chamando a atenção e sendo bastante discutida é a utilização da Inteligência Artificial durante as gravações do filme. O diretor, também codiretor de fotografia, ao lado de Nico Aguilar, comentou ao longo do projeto que “assim como todas as novas técnicas, é um pouco assustador”, e que no caso particular de Pedro Páramo, “se apoiaram nesse tipo de tecnologia para rejuvenescer os personagens porque no livro (e no filme) vemos essas figuras ao longo de muitas décadas”.
Vale lembrar que Rodrigo Prieto foi o diretor de fotografia de O irlandês (2019), de Martin Scorsese, que é tido como um marco no quesito de rejuvenescimento dos atores, o chamado “de-aging”, desenvolvido pela Industrial Light & Magic (ILM), para fazer com que a atuação ficasse mais natural, sem as chamadas máscaras faciais.
Foi justamente enquanto trabalhava em Assassinos da Lua das Flores (2023), outro filme de Scorsese, que Prieto receeu a ligação com o convite para dirigir a obra de Rulfo. Segundo o diretor, em sabatina durante a estreia internacional no Festival de Toronto, ele estava em Oklahoma, quando a produção o contatou e, num primeiro momento, pensou em diversos nomes que poderiam vir a dirigir o filme, até compreender que a ligação, na verdade, era um convite.
Após terminar a filmagem com Scorsese, ele viajou para gravar Barbie (2023), de Greta Gerwig, mas já pensando na adaptação de Pedro Páramo. Contatou Mateo Gil e juntos começaram a pensar em como destrinchar o livro, nos trechos ideais que deveriam selecionar, quais personagens focar, quais linhas escolher do grande emaranhado de fragmentos escritos por Rulfo e, segundo conta Prieto, “foi um processo muito intenso e interessante, poder achar durante tudo isso as partes com as quais eu me conectava mais e, infelizmente, eliminar as coisas que eu amava, mas que não eram partes que eu realmente queria explorar”.
Os fragmentos foram escolhidos e a linha narrativa sendo construída como num grande quebra-cabeça cinematográfico.
Pedro Páramo sem dúvidas é uma obra divisora de águas, muito provavelmente a maior da literatura mexicana. Daí que vem o apego ao texto, um carinho nostálgico que muitos mexicanos possuem e que remete ao primeiro contato com o livro, provavelmente na infância ou adolescência. Para muitos dos realizadores mexicanos, e principalmente para uma legião de fãs espalhados pelo mundo, é quase uma questão de honra fazer o filme tornar-se um clássico também nas telas de cinema.