Knausgard entre dois mundos

Em Estrela da manhã, primeiro volume da nova série de romances de Karl Ove Knausgård, o escritor norueguês flerta com o misticismo sem abandonar o modo realista que o consagrou em Minha luta

O leitor familiarizado com a obra do norueguês Karl Ove Knausgård que decidir encarar a mais nova e volumosa empreitada do autor vai ser assaltado nas primeiras páginas por uma sensação de déjà vu acompanhada de um certo estranhamento. Estrela da manhã (Companhia das Letras, 2024, tradução de Guilherme da Silva Braga), primeiro livro de uma série que já tem quatro volumes publicados na Noruega e não tem previsão para acabar, começa com a narrativa em primeira pessoa de Arne, um professor de literatura num dia de férias de verão que está em sua casa de campo com a esposa e os três filhos.

Tudo na rotina, no modo de pensar e de se expressar e no temperamento do personagem remete ao narrador de Minha luta. Sua esposa, Tove, se comporta como Linda, a então esposa de Knausgård que aparece na série autobiográfica. Há referências diretas a episódios narrados por Knausgård previamente em Minha luta. Há, inclusive, um acontecimento que está presente em A pequena outubrista (Rua do Sabão, 2021, tradução de Luciano Dutra), um dos romances de Linda Boström Knausgård, hoje ex-esposa do autor. Mas, conforme as páginas avançam, as semelhanças vão se diluindo (embora as referências nunca cessem por completo) e o romance vai se transformando em outra coisa.

A história de Arne é sucedida pela de Kathrine, uma pastora em crise no casamento que chega a questionar a própria fé. A eles se somam outros sete personagens. Emil, um jovem que trabalha num jardim de infância e nos tempos livres é guitarrista de uma banda de rock. Iselin, uma jovem retraída que gosta de cantar, mas nunca levou o sonho adiante, abandonou os estudos e trabalha de caixa num supermercado. Solveig, uma mulher de meia-idade que trabalha num hospital e cuida da mãe idosa. Jostein, um jornalista beberrão, decadente, de moral duvidosa, sarcástico e politicamente incorreto. Turid, esposa de Jostein, que tem um trabalho insalubre como cuidadora num hospital psiquiátrico. Egil, um herdeiro desocupado que no passado foi documentarista. E Vibeke, uma galerista que está organizando uma festa surpresa para o marido, um arquiteto renomado. Cada um deles narra a própria história. São relatos de vidas comuns unidas pelo testemunho de um evento extraordinário: o surgimento de uma estrela no céu, desconhecida e mais brilhante que o normal.

A premissa é empolgante, o resultado, nem tanto. Depois do aparecimento da estrela, coisas estranhas começam a acontecer. A princípio sutis, esses eventos vão escalando até esbarrarem no insólito e no paranormal. Hordas de caranguejos atravessam a estrada rumo à floresta. Uma ave de rapina apanha um pardal no meio da cidade em plena luz do dia. Uma infestação de joaninhas invade uma casa. Um homem volta a emitir sinais vitais depois de ser dado como morto por cinco minutos numa cama de hospital. Uma mulher descobre que o morto, que estava sendo preparado há dias para o velório, é o mesmo sujeito que ela encontrara horas antes no aeroporto. Uma criatura de aparência monstruosa é vista em diferentes lugares.

O problema, é claro, não é o assunto (nunca é), mas a forma como ele é tratado. Assombrações, mistérios, fenômenos inexplicáveis, o mundo dos mortos, sempre renderam boa literatura – de Homero a Mariana Enríquez. Muito se falou sobre a prosa recheada de clichês de Minha luta, a maior parte do tempo, de maneira positiva. Mas há uma diferença significativa no uso dos chavões em uma obra e em outra. Em Minha luta, o clichê faz parte do discurso do narrador porque assim é a vida, quase nunca grandiosa, quase sempre um lugar-comum. Em Estrela da manhã, o clichê aparece na estrutura. O livro recém-lançado não é exatamente um “romance de gênero”, mas cai na armadilha de depender de uma trama. Existe uma tessitura interna bem-cosida, uma costura que liga de forma sutil e hábil vários aspectos das vidas dos personagens. No entanto, a organização narrativa é frágil. São muitas as pontas soltas e algumas das tramas que se fecham são previsíveis. Há personagens com menos espaço do que outros, que acabam não acrescentando muito – ainda que a história seja boa. Os diálogos frequentemente têm a espontaneidade de uma telenovela, para não falar na profusão de onomatopeias constrangedoras como Ah, ah, ahs, lá lá lás e dum dum duns.

Por outro lado, é preciso reconhecer o mérito de Knausgård de ter conseguido, de forma geral, criar vozes diferentes para noves narradores - o contraste entre a pastora e o jornalista calhorda, um dos melhores personagens, por sinal, é prova disso – mesmo que muitos deles se pareçam entre si em diferentes aspectos, como no modo de observar a natureza, que é o mesmo do narrador de Minha luta. O olhar sensível e atento ao mundo e às pessoas do autor também aparece em trechos como a passagem de Egil na igreja que, comovido com a simplicidade do lugar, doa uma quantia generosa de dinheiro, “acima de tudo porque eu senti pena daquelas pessoas, só havia um punhado de moedas no fundo da pequena cesta de palha que o homem estendia para recolher as doações. Do lado de fora: o vento, o mar imenso, o céu escuro”.

Muitos dos assuntos de Estrela da manhã são recorrentes na obra do autor. O mais pronunciado é o tema religioso. Knausgård integrou um grupo de trabalho que traduziu a Bíblia do hebraico para o norueguês. A experiência influenciou bastante a escrita de En tid for alt (Um tempo para todas as coisas, em tradução livre), segundo romance do escritor, no qual o principal personagem é um pesquisador da história dos anjos. Em Estrela da manhã, a teologia ocupa um espaço central, não apenas na figura da pastora (ela também integrante de uma equipe de tradução da Bíblia) mas em toda a trama. De forma menos destacada no livro mais recente, a vergonha é um tópico que perpassa todos os romances do autor, do primeiro, Ute av verden (Fora do mundo, em tradução livre), que narra a história de um jovem professor que se apaixona por uma aluna sua do Ensino Médio, à série das estações, que tem dois volumes publicados no Brasil pela Companhia das Letras (Outono e Inverno, ambos com tradução de Guilherme da Silva Braga) e antecedeu Estrela da manhã. Todos com o mesmo modo realista de narrar, as descrições minuciosas e a criação de atmosferas densas tão características ao estilo do autor, ainda que diferentes entre si em outros aspectos.

Contudo, a comparação mais interessante, a meu ver, se dá com Minha luta. A morte é um dos assuntos principais em ambos, mas é tratada de maneira oposta e, ao mesmo tempo, complementar. Se em Minha luta a morte é frequentemente compreendida como um acontecimento biológico, em Estrela da manhã há um esforço em enxergá-la como uma experiência espiritual e mística. O apocalipse em Minha luta é o apocalipse climático; em Estrela da manhã é o apocalipse bíblico. Em Minha luta, a morte deixa de ser “a maior dimensão da vida” para se igualar ao mais mundano dos fenômenos concretos, é como “um cano que vaza, um galho que se quebra ao vento, um casaco que escorrega do cabide e cai no chão”. Em Estrela da manhã, a morte pertence ao domínio do mistério e do etéreo. Em um trecho ensaístico (outra marca de Knausgård), um dos narradores faz uma defesa diligente e persuasiva sobre a possibilidade de vida após a morte e da existência de um mundo dos mortos e pergunta: “será que o limite entre a vida e a morte é resultado dos limites dos nossos sentidos ou será que é real?”. O problema é que, ao contrário do que acontece em Minha luta, as imagens da morte no livro que não pertencem ao ensaio são tão batidas quanto as produzidas pelo cinema espírita nacional e por filmes B de terror. Entre esses dois mundos, difícil não ficar com o “realista” de Minha luta – o que é uma pena diante das muitas possibilidades que o inexplicável nos oferece. Acaba sendo frustrante ver que um autor que foi capaz de formular algumas das perguntas mais instigantes do nosso tempo de forma tão viva e intensa parece ter chegado a um ponto em que tem tão pouco a dizer – apesar das mais de 650 páginas do livro.