Cláudio Aguiar e a arte de contar histórias

Escritor, homenageado com uma seleta de fortuna crítica celebrando os seus 80 anos de vida, escreve um novo livro de poemas do ponto de vista da “física quântica”

Cláudio Aguiar é romancista, ensaísta, dramaturgo, biógrafo, poeta, compositor e crítico literário. Na síntese essencial de tudo isso, e até suplantando-a, está o contador de histórias. Escreveu mais de 40 livros, muitos dos quais premiados e traduzidos para o espanhol, russo, francês e outras línguas ocidentais.

Aos 80 anos, recém-completados, o escritor cearense da vila de Poranga radicado em Pernambuco, há décadas, lê e escreve, diariamente. Registra em cadernetas esboços de ideias e fatos que vão nutrir os seus livros.

No entanto, o livro nem sempre foi um objeto ao seu alcance. Não fez parte da infância do filho do agricultor Gonçalo Aguiar Lima e da costureira Maria Madalena. A iniciação literária veio por iniciativa própria, de sua mente insaciavelmente curiosa.

Em uma tarde de outubro, ele contou sua história à Pernambuco. História, inevitavelmente, inseparável de sua literatura. Virou personagem, como os tantos sobre os quais escreveu, sejam eles reais ou fictícios, ou reais com toques de ficção. Como o fez em O último romance de Proust (2023). Como o fez com A última noite de Kafka (2015). Como o fará com outros tantos livros que ainda pretende publicar, como nos adiantou em uma longa conversa que se estendeu noite adentro, em sua casa, no Sítio Histórico de Olinda.

Sua trajetória é o tema de Cláudio Aguiar: vida e obra literária (2024), organizado pelo cineasta e escritor Rosemberg Cariry. Um calhamaço de 630 páginas. “São textos de crítica literária sobre meus livros”, resume. Críticas escritas por nomes como Jorge Amado, Luís da Câmara Cascudo, Eduardo Galeano e Franklin de Oliveira. As ilustrações, ele diz, são de capas de seus livros e fotografias de sua vida literária. “É um álbum de escritor, não um álbum de família. De família só tem aquela foto ali.” Aponta para a mesa onde um grande porta-retrato mostra os pais Gonçalo e Madalena.

Diante do Mosteiro de São Bento, em Olinda, no sobrado de paredes grossas e pé direito altíssimo, tombado em 1865 pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), a história de Cláudio se encontrou com a de um antigo morador ilustre. O senhor de engenho e militar João Fernandes Vieira (1610-1681) – um dos líderes da luta pela expulsão dos holandeses na terra dos altos coqueiros – habitou e faleceu no mesmo chão de madeira corrida e ladrilho hidráulico, apenas com alguns séculos de diferença em relação ao atual morador.

Na fachada uma placa avisa que aquela construção tem história para contar, e foi contada pelo próprio Cláudio Aguiar. “Queria contar a história da casa e do morador. São duas partes”, explica, lembrando do sociólogo Gilberto Freyre. “Ah, Gilberto! Ele tem um livro muito bonito chamado Oh de casa! (1979), em que diz que a casa pede biografia e sociologia.”

Cláudio Aguiar se levanta de sua cadeira de balanço e saca da estante o livro A Casa de João Fernandes Vieira (2022) para mostrar a luxuosa publicação de capa dura e papel couchê. “Aqui você vai ver que tem uma parte da casa como ela está hoje, e tem uma parte do tempo de João Fernandes, que é o morador de luxo.” Mas não foi só esse o motivo de se debruçar sobre o tema. No período da pandemia de Covid 19, Cláudio e a esposa Célia, enclausurados, completaram bodas de ouro. “Dediquei o livro a ela.”

Olhando para a parede, um desenho chama atenção. “Este foi feito por Ricardo Cavani Rosas. É o auditório do PEN Clube do Brasil, uma organização internacional de escritores, cuja representação brasileira funciona no Rio de Janeiro desde 1936 e que eu presidi durante 10 anos. O desenho ilustra a publicação de 80 anos da organização carioca. Um camarada que adorava aquele clube era o Juscelino”. Sim, o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Cláudio também é membro da Academia Pernambucana de Letras, do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), da Academia Carioca de Letras, e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

A terra

Cláudio Aguiar continua escrevendo muitos livros, nos mais diferentes gêneros literários. “Não me preocupo com isso. O que tenho feito é contar histórias e refletir sobre elas”, diz o escritor. Histórias como a do massacre de um grupo de camponeses do Cariri cearense, contada em seu mais famoso romance, Caldeirão: A guerra dos beatos (1982), episódio comparado à Guerra de Canudos. Com cuidadosa e extensa pesquisa histórica, Cláudio contou também a vida do político e advogado Francisco Julião (Prêmio Jabuti, 2015). Contou-as porque, de certa forma, fazem parte de seu universo. Histórias de insurgentes e camponeses em luta, seja pela terra como espaço de agricultura, seja pela terra como nação.

“O problema da terra no Brasil me tocou profundamente. A comunidade do Caldeirão tinha o Beato Lourenço como guia não somente religioso, mas do ensino da lida com a terra. Após o golpe militar de 1964, a Liga Camponesa renasceu com o MST, que está aí fazendo reforma agrária pontual, em certas áreas. Não é um processo de transformação social porque a legislação que existe serve para frear o movimento, e não torná-lo dinâmico e exemplar”, analisa.

Para escrever Francisco Julião – Uma biografia (2014), Cláudio Aguiar passou 45 dias no México, em 2003. Foi lá onde o político e escritor brasileiro se exilou e viveu os seus últimos anos. “Encontrei muita gente que conviveu com ele”, lembra o biógrafo.

Ensaísta, Julião colaborou com a revista Siempre, tradicional publicação sobre política mexicana. “Além do acervo brasileiro, juntei depoimentos, entrevistas, conheci a família…”, conta Cláudio, revelando que foi Julião quem o nomeou correspondente do jornal A Liga, lançado em 1962. Todo esse acervo de documentos, vídeos, filmes e entrevistas foi cedido à Fundaj. “Também estou oferecendo os escritos políticos de exílio, já que, em 2025, Julião completaria 110 anos. Espero que publiquem.”

Nos tempos d’A Liga, Cláudio andava com uma máquina fotográfica a tiracolo pela Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas… “Corria pra lá e pra cá cobrindo o movimento. Fui conhecendo o pessoal e me aproximei de Francisco Julião, de quem me tornei amigo.”

Em seguida, no Jornal do Commercio e no Diario de Pernambuco, passou a fazer crítica literária. “Sempre gostei de jornal”. Mas acabou. Ao menos da maneira que se fazia lá nos anos 1960. Vai-se o impresso, fica o digital. “Ler o que você quer, na hora que você quer, na internet, é uma vantagem. O jornal dava apenas a notícia do dia. Na internet você vê no mesmo instante em que a notícia acontece”, compara, sem deixar de apontar as desvantagens. “A simultaneidade da notícia traz uma sensação de afogamento. A facilidade de divulgação produz as fake news. Por outro lado, apesar de a imprensa escrita diária passar pelo filtro do editor, não está livre da manipulação das chamadas grandes mídias, geralmente vinculadas às grandes empresas e ao mercado”, pondera.

Como consequência da multiplicidade de meios de comunicação, Aguiar aponta para a linguagem hieroglífica que surgiu com a escritura de símbolos, também conhecidos como emojis. “Foi, não foi, estou colocando uma mãozinha de legal em uma mensagem”, brinca. A leitura também tem sido afetada, no impresso e no digital, com a preferência pelos textos resumidos e pelas palavras abreviadas. O ponto positivo talvez seja o acesso ao texto através de áudio. “Em um país com índice de analfabetismo ainda considerável, a facilidade de difusão do áudio democratiza a informação. Mas isso está fazendo com que o alfabetizado tome o lugar do analfabeto.”

Coisas do Progresso, que é um senhor de duas caras. “A descoberta do átomo gerou a bomba atômica. Na evolução da medicina, os laboratórios preferem continuar a vender remédios paliativos a curar o câncer. Adoro astronomia, mas a corrida espacial é estúpida, gasta-se muito dinheiro nisso”.

Cláudio Aguiar é defensor das ideias socialistas. Segundo ele, não se pode dizer que o regime comunista não deu certo porque sequer chegou a ser implantado. “Acabar com a mais-valia, a exploração do homem pelo homem, não ocorre do dia para a noite. É um processo de arrumação social para chegar à igualdade”, opina, incrédulo de que essa ideia seja posta em prática tão cedo. “Isso é coisa pra santo. É muito difícil o ser humano aceitar um regime de igualdade social”, lamenta.

Crítica

Você é religioso? “Sou, de todas as religiões”. Como assim? “A religião para mim é como um mito divino. Acredito que há uma mitificação da bondade. Se Deus é capaz de construir uma pedra tão pesada que não possa com ela, ele não é tão poderoso”, explica, adiantando que está escrevendo um novo livro de poemas justamente sobre a questão, partindo de uma perspectiva intimista. “Vou chamar de O infinito dentro de mim. A ideia é mostrar que essa característica infinita do universo está dentro da gente, do ponto de vista da física quântica”, adianta, em seguida citando a Inteligência Artificial. “Alexa é muito amiga da minha neta: ‘vovô, não escreve, pergunta a Alexa’”, conta entre risos. A coisa é séria. “Com a Inteligência Artificial, o que será da imaginação?”.

Enquanto o ser humano ainda dispõe da habilidade criativa, Cláudio brinca com a forma. Em seu mais recente livro de poesia, Oráculo para um mundo invisível, sobre possíveis estragos causados pela queda de um asteroide na terra, ele exibe uma coroa de sonetos, onde os 14 versos são ligados entre si, de tal sorte que o último verso de um soneto é o primeiro do seguinte soneto, sequencialmente. “É muito difícil. Quase ninguém faz”, afirma, sem falsa modéstia.

Esse seria um dos estilos literários de Cláudio, que afirma só ver estilo nos outros. “Só me convenceria que tenho um estilo se alguém me dissesse. Marcel Proust, por exemplo, utiliza um estilo de frase que é sem fim”, define o crítico, que também não escapa das críticas dos outros. “Quando publiquei Exercício para o salto, saiu n’O Globo uma matéria que só não me matei porque estou aqui vivo. Olha só: o cara não leu e achou que eu estava querendo dar um salto na literatura (risos): ‘Cláudio Aguiar precisa de muito exercício para o salto’, e que sofri influência de Érico Veríssimo, que não havia lido até então.”

Coletânea de contos sobre o Recife e Olinda, Exercício para o salto (1972) foi o primeiro livro publicado por Cláudio Aguiar. Em seguida, ele escreve uma peça de teatro, Flor destruída, publicada por Ariano Suassuna quando foi secretário de Cultura da Prefeitura do Recife, em 1975, e do Governo de Pernambuco, em 1995 e em 2007.

Nem sempre a crítica foi cruel com Cláudio. Na contracapa do romance Caldeirão, um elogio rasgado feito por Jorge Amado: “Para um velho romancista é sempre enorme alegria descobrir um novo colega de ofício. Sobretudo quando se trata de alguém senhor de indiscutível vocação servida por grande talento. Caldeirão é excelente. Trata de um assunto empolgante com a força e dignidade por ele exigidas. A narrativa é de primeira ordem e os diálogos magníficos. As figuras parecem esculpidas de tão dramáticas, reais e transfiguradas. Ninguém vai mais esquecer o beato José Lourenço”. A primeira crítica assinada por ele veio com a análise do título O sentido social da Revolução Praieira (1967), do historiador Amaro Quintas.

Literatura

Para Cláudio Aguiar, a literatura em particular e a cultura brasileira em geral ainda sofrem - desde a Semana de 1922, marco do Modernismo - do que ele chama de “caráter de fragmentação”. “O Modernismo chegou com muito atraso e bairrismo. Mas Gilberto Freyre e, antes dele, Franklin Távora, com o Regionalismo, corrigiram essa falha fragmentária, que concentrou a cultura no eixo Rio-São Paulo”, critica, nomeando essa característica fragmentária das manifestações culturais brasileiras ressaltadas em determinados polos do país de ilha cultural. “É preciso tomar cuidado para não entender a literatura como reflexo de um lugar”, avisa.

CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA

Venda avulsa na Livraria da Cepe