A humanidade em "Mickey 17"

“É um novo tipo de ficção científica que está transbordando de perfume humano”. Gravada no jornal sul-coreano The Korea Times, a frase foi dita pelo cineasta Bong Joon Ho em janeiro de 2025, quando esteve na cidade de Seul para as primeiras promoções de Mickey 17.

Produzido pela Warner Bros. e com um orçamento estimado em 150 milhões de dólares, o longa-metragem é baseado no livro Mickey7, do escritor estadunidense Edward Ashton. Lançada no ano de 2022, a obra se propõe a imaginar o futuro a partir da perspectiva inusual de um homem clonado para missões de alta periculosidade e agora – apesar de aumentar em 10 o número de clonagens do protagonista para as telonas – Bong parece transcrever para a tela uma produção singular, ainda que fiel aos escritos do autor original.

O longa-metragem, com avant-première no Festival de Cinema Internacional de Berlim, chega aos cinemas de todo o mundo no dia 7 de março. É o primeiro trabalho do diretor desde Parasita, grande vencedor do Oscar 2020. O filme foi aclamado com seis estatuetas, incluindo as categorias de maior destaque, como as de Melhor Filme (tornando-se o primeiro filme de língua não inglesa da história a ganhar a tão cobiçada categoria), Melhor Filme Internacional e Melhor Direção. Assim sendo, a expectativa para o mais novo lançamento do cineasta tem sido exacerbada, desde o primeiro momento.

As gravações de Mickey 17 aconteceram entre os meses de agosto e dezembro de 2022 e a data de estreia foi anunciada para março de 2024, sofrendo alterações contínuas, que atrasaram o lançamento em um ano. Muito foi especulado sobre as causas do adiamento. Para a revista americana Empire, o cineasta revelou: “O estúdio respeitou meu direito ao corte final. Claro, durante o processo de edição sempre existem muitas opiniões e várias discussões acontecem, mas esse filme tem o meu corte e estou muito feliz com isso. Foi um processo longo, mas sempre tranquilo e respeitável”.

Não é a primeira vez que Bong Joon Ho trabalha com a indústria cinematográfica norte-americana e luta para que suas ideias permaneçam em tela. Em 2013, seu filme Snowpiercer estreou no circuito de premiações após embates com o então produtor de cinema Harvey Weinstein (nome proeminente no meio, até cair em desgraça e ser condenado por crimes sexuais), que exigiu cortes diversos a fim de priorizar cenas de ação.

Para manter uma de suas sequências intactas, Bong chegou a clamar a importância pessoal que uma das cenas possuía para si, visto que ela representava um homem que trazia um peixe em mãos e seu pai havia sido um pescador. Ao escutar a justificativa, Weinstein permitiu que aquela imagem fosse mantida no filme. Depois de sua exibição, em entrevista registrada na revista Far Out, o diretor sul-coreano confessou: “Foi uma mentira. Meu pai não era pescador”.

Quando trabalhou com a Netflix, em 2017, para o lançamento de mais uma de suas obras, o contrato assinado foi diferente do anterior e ele possuiu liberdade criativa para instituir o corte final da própria produção. Bastante aclamado no circuito, Okja contou com uma protagonista sul-coreana, interpretada pela jovem atriz Ahn Seo-Hyun, e um time grandioso de estrelas hollywoodianas: Tilda Swinton (O grande Hotel Budapeste, Doutor Estranho), Paul Dano (Pequena Miss Sunshine, Os Fabelmans), Steven Yeun (Minari, Nope) e Jake Gyllenhaal (Donnie Darko, Brokeback Mountain).

Depois do sucesso de Okja, o triunfo latente de Parasita e a demonstração de importância dada pelo diretor em se fazer presente durante todos os processos de criação, a expectativa para Mickey 17 apenas se acentua.

Estrelando como Mickey 17 – e também Mickey 18 e todos os outros Mickeys, diga-se de passagem – temos o britânico Robert Pattinson. Como um bom jovem ator da Inglaterra dos anos 2000, Rob participou da franquia Harry Potter e, apenas três anos depois, ganhou enorme notoriedade internacional interpretando o vampiro Edward Cullen na saga Crepúsculo. Apesar de muito conhecido por seu papel de galã adolescente até os dias de hoje, Pattinson já provou algumas vezes sua capacidade de transmutação e é um dos mais bem-pagos atores de Hollywood.

Em filmes como The Batman, O farol e Tenet, o ator se desprende cada vez mais da imagem cuidadosamente podada de jovem galã e abocanha personagens complexos, com particularidades que exigem muito de sua atuação. Filme após filme, Robert Pattinson entrega atuações de grande qualidade.

“É estranho porque nos últimos anos, começando com a Covid-19 e depois com as greves, todo mundo constantemente dizia que o cinema estava morrendo, e de modo muito convincente”, contou Robert em entrevista à Vanity Fair. “Então, olhando para os últimos meses, há esses filmes superambiciosos. Parece que subitamente temos uma nova leva de diretores que empolgam o público. Espero que Mickey 17 seja lançado em um momento de entusiasmo com o cinema.”

Além de Robert, os atores Naomi Ackie (Star Wars: a ascensão Skywalker, Pisque duas vezes), Steven Yeun, Toni Collette (Hereditário, Pequena Miss Sunshine) e Mark Ruffalo (Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Pobres criaturas)  integram o elenco da obra.

Apesar de Mickey 17 ser uma narrativa de ficção científica, o público pode esperar comédia e drama como duas facetas centrais da obra. Bong Joon Ho é um diretor em cuja arte transparece seu cuidado ao trazer temas diversos e encará-los sobre perspectivas essencialmente humanas.

“O trabalho de Mickey é o de ser escolhido para missões com grande probabilidade de morrer. O número 17 quer dizer que ele já morreu 17 vezes, é realmente um trabalho extremo. É uma configuração desumana onde os humanos são reimpressos a cada vez que morrem, como se reimprime documentos.”, revelou o diretor, produtor e roteirista do filme, Bong, para o The Korea Times.

Assim, combinando o sci-fi com o drama, a aventura e o suspense, o longa-metragem parece questionar a humanidade que há em morrer e, através de uma narrativa de crescimento, levar o espectador a se conectar de maneiras diversas com Mickey, o protagonista.

Pattinson evidenciou a maneira inocente de Mickey enxergar o mundo à sua volta. “Como interpretar um personagem sem nenhuma autoestima, mas que não é depressivo? A maioria das pessoas não quer ser apenas um número, mas Mickey quer ser apenas um número. Ele é como um cachorro bobo que faz as necessidades dentro de casa, você coloca-o para fora e ele faz a mesma coisa de antes, de novo e de novo. Até a exaustão”, comentou. Para o ator, é “como se Mickey vivesse correndo atrás de punições sem sequer perceber”. Ostensivamente, ele é um trabalhador explorado que não percebe o ciclo de violência e abuso em que está preso.

Mickey 17 é uma obra ousada sobre o futuro e o presente, o que significa morrer e, principalmente, o sentido da vida.