O anjo desfila, lépido e leve, nas ramagens do lugar, numa aparição que inquieta, mas não assusta. Assim ele chega à mansa quietude dos grotões — era o nome do lugar? —, para revolucionar a literatura nordestina, segundo avaliação do crítico Mário da Silva Brito em longo artigo de duas páginas na revista Isto É.
Isto aconteceu em 1976 com o romance O anjo do quarto dia, escrito pelo pernambucano Gilvan Lemos, então publicado pela Editora Globo, e consagrado pelos leitores e pelos estudiosos, que viram nele uma alegoria das ditaduras e dos movimentos de repressão, contra toda a injustiça e contra toda a perseguição vivida pelos inocentes, durante uma das páginas mais negras da nossa história. Neste momento em que a Cepe publica uma nova edição do romance, corrigindo uma costumeira injustiça editorial brasileira, o nome de Gilvan volta a enfeitiçar os leitores mais jovens.
O romance retorna às livrarias numa hora mais do que adequada: Gilvan é o homenageado desta edição da Bienal do Livro de Pernambuco, que acontece entre 4 e 13 de outubro, no Centro de Convenções.
“A obra se inscreve na longa tradição ocidental da sátira alegórica, conservando, por outro lado, com fidelidade, as raízes do romance social brasileiro, sem concessões. Se encerra uma visão muito pessoal da problemática da tirania, não há sombra de dúvida que convence e comove”, consagram os editores, em texto assinado nas orelhas da edição inaugural do livro.
O anjo do quarto dia revela a força de um personagem magistral que toma conta da história desde as primeiras páginas e que nos surpreende nos últimos capítulos. Por isso, não é aconselhável dizer o que vai acontecendo, nem descobrir os lances do enredo ao leitor que ainda não conhece esta maravilha da literatura brasileira. É preciso chegar a ele de mansinho, descobrindo a técnica sofisticada de Gilvan, os lances secretos da história, até sua revelação final, com tudo o que ela tem de encantador.
No princípio, o leitor se dá conta da presença de personagens marcantes como Ana e Oricão. E quem são Ana e Oricão — Orico Rezende ou Oricão Rezéns? A magia da história vai revelá-los, é só uma questão de tempo, de tempo e de lugar. Além do mais, existe a extrema qualidade da linguagem, observada claramente neste jogo verbal do segundo capítulo, em que o verbo haver é frisado para entendermos a ênfase de cada personagem: “Havia, há Orico Rezende...” (...) “Houve também Amísio, filho de Amélia, AM, e Anísio, isio.” Neste jogo talvez esteja a chave do romance, pelo que ele tem de habilidoso e de lúdico. Este jogo lúdico, todavia, leva a uma reflexão a respeito do comportamento humano. E a respeito da construção da novela.
Esta figura de Anjo vai percorrendo todas as páginas, apesar do mistério com que é tratado, para adquirir uma importância notável, e nem sempre pela beleza angelical, mas pela força da sua ousadia, da sedução que desperta nas mulheres, e pelo medo que impõe aos homens. Afinal, um anjo é feito, sobretudo, de carne e de encantação.
Um grande livro a ser visto e revisto por todos, a nos acompanhar, pela estrada afora, com a força deste anjo, em geral nem tão anjo assim, mas revelador de um escritor que permanece sempre presente com os seus jogos narrativos. O nosso Bruxo de São Bento.