Ilustração por Hallina Beltrão

Finalmente estão disponíveis para leitura em português as Águas-fortes cariocas de Roberto Arlt, crônicas produzidas pelo escritor argentino quando passou pelo Brasil em 1930, agora traduzidas por Gustavo Pacheco e publicadas na coleção Otra Língua, da editora Rocco. Os textos fazem parte de um projeto amplo na vida de Arlt, aquele que diz respeito a sua trajetória como colaborador de diversos periódicos argentinos ao longo da década de 1930 (Arlt morreu em 1942, aos 42 anos). Arlt foi uma espécie de João do Rio portenho: volumosa produção de textos de ocasião, que no caso de ambos ainda não foi coligida em sua totalidade, olhar atento aos personagens anônimos das ruas e um pendor etnográfico no registro dessa observação — além do fato curioso de que os dois morreram, muito jovens, de ataque cardíaco.

 

O primeiro romance de Arlt, El juguete rabioso, publicado em 1926, é um livro de formação em chave paródica: narrado na primeira pessoa por Silvio Astier, vai da adolescência à idade adulta acumulando paisagens degradadas, indivíduos sem rumo, eventos humilhantes e trabalhos precários, sem se preocupar com a coesão ou o embasamento da representação — só narrando, colocando uma cena depois da outra. É preciso ressaltar a fibra da qual é feito Silvio Astier, que vai formar todos os outros personagens principais de Arlt: resistência, curiosidade e teimosia diante da inexorabilidade do fracasso que parece persegui-lo em todos os lugares. Arlt não toma as coisas como elas são, e sim como elas podem ser a partir do contato com essa resistência, curiosidade e teimosia de seus personagens — daí seu “expressionismo” tão pronunciado, sua tendência ao exagero e ao grotesco.

 

Em 1929, o ano de O som e a fúria, de Faulkner, e de Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, Arlt publica Los siete locos, a história do encontro de Erdosain com O Astrólogo, espécie de reencarnação do demônio, de Aleister Crowley proletário e portenho. Erdosain, como Arlt, é um inventor fracassado; não consegue transpor para o mundo material aquilo que sonha, e essa impossibilidade lhe frustra imensamente — é essa dimensão da obra e da personalidade de Arlt que mais vai fascinar Ricardo Piglia, em obras como Nombre falso (1975), La ciudad ausente (1992) ou Blanco nocturno (2010). Los siete locos fala do desejo do Astrológo de realizar uma revolução social, financiada pelos lucros de sua rede de bordéis espalhados pela Argentina. Essa sensibilidade do complô, da conspiração e da anarquia, que já está em El juguete rabioso, é fundamental na poética de Arlt e repercutirá, por exemplo, na conspiração dos cegos no romance de Ernesto Sabato, Sobre héroes y tumbas, de 1961. Arlt vai continuar envolvido com os personagens e com a trama de Los siete locos, publicando, em 1931, uma continuação: Los lanzallamas.

 

O dilema fundamental da obra de Arlt está em toda parte: técnica e subjetividade, sentimento e produção, invenção e brutalidade, sutileza e mecânica, todos em confronto dentro de uma percepção atormentada e fragmentada do mundo. Daí a leitura insistente que Arlt fazia de Dostoiévski, chegando ao ponto de reescrever Crime e castigo em um conto, “El jorobadito” (publicado em uma coletânea de contos de mesmo nome lançada em 1933), em que um homem narra como estrangulou Rigoletto, o corcunda do título. “Fiz um imenso favor à sociedade, pois livrei todos os corações sensíveis como o meu de um espetáculo pavoroso e repugnante”, escreve o assassino sobre seu crime, como Raskolnikóv, ou como aquele narrador das Memórias do subsolo: “Sou um homem doente, um homem mau, um homem desagradável”.

 

Para Arlt, o vício, a doença e a maldade dos seres são elementos que os ligam ao espaço que os circunda — cidades, quartos, subterrâneos, bordéis, bibliotecas, daí seu olhar tão treinado para as minúcias do cotidiano, como encontramos nas Águas-fortes. “Sem dúvida não se encontra em toda Buenos Aires um cínico da tua estampa e do teu calibre”, diz oassassino ao corcunda. Esse é o campo de ação de Döblin e também de Hermann Broch — as prostitutas, os rufiões, os ex-presidiários — mas sobretudo de Elias Canetti e de seu Auto de fé. É impressionante notar como Roberto Arlt movimenta peças semelhantes àquelas de Canetti, e num estilo afim: violento, desencantado, por vezes brutal, frequentemente irônico e escarnecedor. Mas há um elemento perturbador em tudo isso, porque Arlt retoma os motivos de Canetti — o corcunda, a violência, a misoginia, até a tentativa de queimar uma biblioteca em El juguete rabioso— antes de Canetti publicar Auto de fé, em 1935. Algo que casa bem com a obra de Arlt, cheia de eventos mágicos, delírios e preocupações metafísicas, mas também envolvida numa deliberada reflexão artística sobre a potência do falso e da ficção.