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Na capada edição brasileira da biografia de Frank Sinatra, A Voz, escrita por James Kaplan, um trecho de uma crítica do New York Times é usado para atrair apressados compradores ao livro: “Uma biografia que se lê como romance”. Há alguns problemas na escolha da frase. Em primeiro lugar, romance é apenas uma forma de se contar uma história, seja ela qual for. Romance, por si só, não inclui reviravoltas, dramas ou nada que magnetize o leitor. Até a vida mais monótona poderia ser lida como um romance. Romance é gênero e não conteúdo. O outro problema é que, em se tratando de Sinatra, até o autor mais burocrático teria problemas em ser minimamente entediante. Além disso, quem se aventura a ler uma obra com mais de 600 páginas sobre o cantor sabe muito bem onde está se metendo.

 

Compreendemos, no entanto, a propaganda duvidosa do livro, e o uso da palavra romance, quando entramos em contato com o texto de Kaplan, poético e repleto de imagens fortes. É o caso da cena inicial, que infiltra bem em nosso imaginário como Sinatra acabou se tornando uma espécie de RG do século 20, com seu nascimento deixando anacrônico tudo o que existia: “Uma tarde fria e úmida de um domingo de dezembro, em 1915, um dia mais parecido com o século anterior do que com o novo, entre os prédios de apartamentos de estrutura de madeira (…). A cozinha do apartamento sem água quente na Monroe Street está cheia de mulheres, todas reunidas em torno de uma mesa, gritando ao mesmo tempo. Em cima da mesa está uma garota de cabelos avermelhados, de apenas dezenove anos, imensamente grávida”.

 

A mãe imensamente grávida sofre problemas na hora de dar à luz. O médico, chamado às pressas para realizar o parto, rasga o rosto da criança, deixando-a com cicatrizes pelo resto da vida e com o sentimento de que todos estavam mais preocupados em salvar a mulher. Kaplan toma esse fato para psicologizar e, assim, compreender o esforço descomunal de Sinatra para se livrar de uma existência pobre, atada ao anacronismo de um outro século, e enfim se tornar o primeiro grande mito da cultura popular.

 

Kaplan não poupa as polêmicas de Sinatra, da sua atribulada ligação com a máfia, da sua fuga deliberada em relação ao passado e, claro, é bastante caloroso ao nos fornecer detalhes da tumultuada relação do cantor com Ava Gardner. A atriz foi sua mulher-abismo, responsável por infiltrar ainda mais drama em algumas das suas melhores interpretações. De certa forma, o trauma emocional com Ava Gardner foi quem deu o polimento final à Voz que guiou o século 20. Esse século repleto de tensões, de guerras e de rachaduras sociais, mas que foi irremediavelmente dependente de um homem que soube como poucos nos explicar para que servem as canções de amor. Talvez A Voz não seja um romance, tal e qual aquela propaganda quer nos fazer crer; mas é um grande livro de História, essa grande devedora da ficção.