Fernando Paixão1

 

O sonâmbulo amador: assim se chama o segundo romance de José Luiz Passos2, recém-publicado e que merece especial atenção. Já desde o título, o autor oferece uma chave para conhecer o universo de Jurandir, personagem do interior de Pernambuco em torno ao qual sucede um vasto redemoinho de emoções. Funcionário antigo de uma tecelagem em degradação, passado dos 60 anos de idade, ferido pela perda prematura de um filho e dividido entre a esposa e a amante – logo se depara com a loucura. Bota fogo num carro e adentra no mundo dos sonâmbulos.

 

Estamos, pois, frente a uma subjetividade esgarçada, em dúvida quanto às próprias forças, incontroláveis; mas que, ainda assim, se vê aplicado no apontamento de confissões, registradas em cadernos. Decorre então a mistura de fatos passados e presentes, sem limbo claro entre a realidade e o sonho, marcas de um sujeito em busca de um fio condutor de si mesmo. Situação precária e amadora.

 

Trazidos à escrita, os pensamentos de Jurandir oscilam entre o estilo memorial aplicado à objetividade da narrativa – talvez para não se entregar por completo ao desvario –, intercalado de reflexões e sentimentos provocados pela estadia numa clínica psiquiátrica em Olinda. É nesse âmbito que orbitam figuras como Minie, Heloísa e Marco Moreno Prado, além do dr. Ênio, Ramires e principalmente madame Góes – espécie de alter-ego do narrador; figuras vistas sob as lentes de um candidato a demente.

 

“Ninguém é capaz de conhecer de forma plena a vida dos outros, ou mesmo a vida em sociedade”, pontua certa passagem do texto, como que a expressar um desabafo, ponto zero a partir do qual nos comunicamos uns com os outros. Razão pela qual o pensamento tateia, medita, descreve, perfaz uma zona de lusco-fusco para as conversas e os gestos. Ainda assim, Jurandir não se entrega de todo ao soturno pessimismo da cisão.

 

A qualidade maior do romance, para além da trama das subjetividades envolvidas, está na realização coerente e apurada da sua linguagem. Apuro no sentido de ser fiel a uma consciência intranquila, esforçada em atravessar um campo minado, repleto de impulsos. “Há um tipo de desespero que acaba sempre com o homem nu e desemparado, sorvendo a fúria que ele próprio desencadeou”, afirma Jurandir. O que leva a supor que ele escreve justamente para aplacar seus conteúdos furiosos.

 

A arte de José Luiz Passos aparece no tom natural que perpassa o texto e lhe dá unidade. Tece uma voz impressionista e genuína, capaz de nos envolver em torno ao protagonista e seu pequeno mundo da clínica psiquiátrica. Microcosmo que vive fora das regras sociais e não deixa de incluir uma peça escrita por dr. Ênio, a ser encenada pelos internos, as “almas-grátis” do estabelecimento, numa versão bem brasileira do tema clássico em que a loucura se mistura com o teatro: condição trágica que assume ares de comicidade.

 

Dessa maneira, ao longo do romance, Jurandir delineia o desenho errante da sua pessoa. Ou o que sobrou dela, conforme fica sugerido no epílogo de dois anos depois, igualmente ambíguo. O próprio escrevinhar serve de terapêutica com vistas a alinhavar os fios perdidos. Incorpora as idas e vindas da reflexão, intercala realidade e visão onírica, resultando num mosaico incompleto e ambíguo.

 

Como ele mesmo diz: “acordei misturado às noções que a noite fabrica”.

 

Caberá ao leitor, destinatário final, completar os vazios que permeiam as entrelinhas dessas memórias impregnadas de nostalgia. Ou, ao contrário, deixar em aberto o destino de personagem tão enredado, preso à sua história, sem poder sair das amarras do passado. Para nós, o que importa é a travessia da leitura, acompanhar a crônica de um homem à beira da loucura e que tem a coragem de se colocar diante do espelho da escrita. Ao ler as palavras do sonâmbulo, compartilhamos nele uma dimensão cindida, humanamente nossa.

 

1 - Fernando Paixão é escritor e professor de literatura no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP.

2 - PASSOS, José Luiz. O sonâmbulo amador. Rio de janeiro: Alfaguara, 2012. O autor também é professor de literatura e cultura brasileira, na Universidade da Califórnia em Los Angeles, UCLA.