Talvez o meu comentário seja uma verdadeira cruz, mas alguém vai ter de carregar: a função primordial de qualquer cronista é despertar a confiança dos seus leitores. Não falo aqui de uma confiança “jornalística”, do tipo que sempre lança mão daquelas duas palavras tão cheias de significados, e por isso mesmo contraditórias, “isenção” e “verdade” (sim, não dá para deixar de usar aspas em se tratando desses conceitos). Mas a confiança de que alguém irá preencher seu pensamento com ideias que vão lhe desestabilizar, provocar raiva ou o necessário desconforto quando a estabilidade é um problema (e convenhamos: em algum momento ela vai se tornar um problema), com certa regularidade.
Com os cronistas, os “nossos cronistas”, podemos concordar ou descordar, brigar, travar guerra e paz. Sentimentos que fazem parte do pacote da “confiança”.
Tenho uma lista de autores a que sempre recorro quando preciso me desprogramar, repensar os fatos e “reiniciar o sistema”. A gaúcha Eliane Brum, desde que passou a publicar uma coluna semanal no site da revista Época, faz parte dessa listagem. Seus textos investigam, com o olhar clínico da repórter e a sensibilidade de uma ficcionista, dramas e vidas que muitas vezes poderiam passar despercebidas, invisíveis nas páginas dos jornais ou nas redes sociais. Os tais desacontecimentos, neologismo que é mais irônico do que real, porque no fundo tudo “conta”, tudo “incomoda”, tudo “dói”. E Eliane tem um faro para os melhores, e mais incômodos, desacontecimentos.
Num momento em que as obras de Rubem Braga e Paulo Mendes Campos começam a ser revistas e a ganhar reedições cuidadosas, é bom ver que o gênero crônica se reinventa e se atualiza graças ao esforço de gente como Eliane Brum. A reunião das suas colunas publicadas no site daÉpoca, A menina quebrada, inclusive, é lançada pela Arquipélago, editora que tem feito um ótimo trabalho em publicar a nova geração de cronistas do País. Foi o caso do ótimo livro Nós passaremos em branco, do curitibano Luís Henrique Pellanda, lançado em 2011, que acabou sendo finalista do Prêmio Jabuti.
O rebanho reunido de textos de A menina quebrada ajuda a redimensionar a importância da obra de Eliane Brum, além de revelar o quando a curiosidade non-stop é o combustível básico para quem quer continuar incomodando o mundo com palavras: “Escrevo porque a vida me dói, porque não seria capaz de viver sem transformar dor em palavra escrita. Mas não é só dor o que vejo no mundo. É também delicadeza, uma abissal delicadeza, e é com ela que alimento a minha fome. Desde pequena sou uma olhadeira e uma escutadeira, raramente uma faladeira, e vou engolindo as novidades com os olhos e com os ouvidos, sempre ávida por mais. Foi isso o que fez de mim repórter, que é muito mais do que uma profissão, é um ser/estar no mundo. Mas talvez só nesta coluna de opinião, que agora vira livro, eu tenha compreendido o quanto a minha curiosidade é gulosa.”