O escritor moçambicano Mia Couto desvenda o peso dos fantasmas entre pai e filho

O passado é um fantasma. No caso de Antes de nascer o mundo, é mais do que isso. É o guia dos personagens, o que faz a engrenagem funcionar. No livro do escritor moçambicano Mia Couto, todos são afetados pelo que já se viveu de alguma maneira. Uns sentindo-se transtornados pela impossibilidade do regresso; outros, querendo anular o vivido.
Assombrado pela morte da esposa, Silvestre Vitalício, um patriarca misógino, carrega os dois filhos para uma terra distante, alheia ao mundo em que, dias antes, os três habitavam. O lugarejo, dissociado de qualquer memória que o trio pudesse vir a ter, recebe o batismo de Jerusalém. E também aos herdeiros Silvestre dá novas graças. Embora seja ele quem dite as viradas na trama, o olhar narrativo em primeira pessoa é o de Mwanito, o filho caçula.
Sem passar incólume pela loucura paterna, o menino logo nos explica o que sabe de seu novo universo: “Meu velho, Silvestre Vitalício, nos explicara que o mundo terminara e nós éramos os últimos sobreviventes. Nessas longínquas paragens, até as almas penadas já se haviam extinto”. Mas seria mesmo a insanidade o fator preponderante nas ações desse pai autoritário ou seu desfacelamento diante do mundo teria outras razões?
Mia Couto, a partir dessa pretensa loucura, descortina uma história de impossibilidades. Silvestre quer esquecer e, por isso, adentra as estradas africanas, em uma fuga desatinada. Fuga essa, no entanto, que falha. Ora, de quem ele foge? No intuito de se desvencilhar da vida pregressa, o personagem só não imaginava tropeçar na mais simples das questões: não há como apagar as marcas do passado.
O pequeno Mwanito, entretanto, traça rota oposta à do pai: quer suas memórias frente a frente consigo mesmo. Tem direito a elas.
O abismo de lembranças do filho caçula é pautado pela ausência materna. Quando Dordalma morreu, Mwanito tinha não mais que três anos. Desse tempo, só consegue lembrar-se da voz da mãe. Ao perguntar ao pai se o mesmo não tem memória de Dordalma, ouve: “Nem dela, nem da casa, nem de nada. Já não me lembro de nada”. É fato que a busca por explicações sobre a morte de Dordalma vai determinar todo o desenvolvimento da narrativa.
Dividido em três livros (A humanidade, A visita e Revelações e regressos), Antes de nascer o mundo possui a prosa da sensibilidade e sua literatura consegue ter também a força de uma obra marcada pelo poético. Entre o onírico e o real, Mia Couto investiga este fantasma chamado passado, com belas passagens sobre do que é feita a memória e do que ela é capaz.