O argentino Reinaldo Laddaga, professor da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, lançou o livro Estética da emergência em 2006. Seu objetivo é o de dar conta de uma “formação de outra cultura das artes”, como afirma no subtítulo. Escrito em espanhol e publicado originalmente na Argentina, o livro ganhou há pouco uma edição brasileira, pela Martins Fontes, com tradução de Magda Lopes. São nove ensaios interligados que abordam vários campos da arte e do pensamento do presente: música, literatura, cinema, pintura, filosofia, sociologia, antropologia, cibernética, e mais.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que Laddaga entende por “emergência”. Para ele, a emergência é um momento abrupto de revelação dentro de uma série de eventos ou práticas. Sua especificidade está no fato de que não é esperada: a emergência será sempre uma ruptura, algo que não poderia ter sido previsto a partir da análise dos elementos surgidos anteriormente. Nesse sentido, a emergência dificilmente será aproveitada ou valorizada no contexto imediato de seu surgimento — Laddaga argumenta que ela está posta na história de forma desconfortável, em confronto com os desejos do senso comum da época que lhe coube.
Consequentemente, a “estética da emergência” será uma tentativa de dar conta do rastreamento desses vários momentos de irrupção artística desconfortável. É por isso que a escrita de Laddaga se movimenta tanto, indo ao século 19 e voltando às intervenções de poucos anos atrás, trazendo consigo referenciais que dizem respeito à teoria estética da década de 1960, por exemplo. A estética da emergência opera muitas vezes por triangulações: uma reflexão sobre as recentes exposições de Sophie Calle, resgata também a poesia de Baudelaire e a teoria da modernidade como tabu, de Theodor Adorno. Ou ainda: toda atualização técnica será acompanhada de uma problematização da linguagem e da relação desta com o contexto político e social.
Primeira conclusão provisória e possível: A arte contemporânea não cabe em demarcações restritas, mesmo aquelas que determinavam se tal arte é “visual”, “escrita”, “sonora”, “plástica”, ou “gestual”. O realizador que está por trás dessa arte também já não é o mesmo, já não ocupa as posições fixas de outrora, já não controla com exclusividade o andamento de sua criação (“sua criação” nem existe mais, por sinal). A figura do artista como iluminado, como alguém que maneja uma série de técnicas com alto grau de excelência e que, por isso, está distante ou separado da humanidade, essa figura é obsoleta. O artista como administrador, regulador e controlador dos “avanços” da linguagem, o artista como posto alfandegário, como guarda das fronteiras, essa figura é obsoleta.
O artista não mais como vidente ou guardião (da língua, do saber, da técnica), mas como uma posição que condensa, provisoriamente, um exercício de intervenção sobre as formas de vida estabelecidas. Um exemplo da constituição desse artista-guardião, que é o artista modernista, está na frase de Gertrude Stein: “escrevo para mim mesma e para os estranhos”. Um exemplo do artista em sua feição contemporânea, como aponta Laddaga em seu livro, é Sophie Calle e seu projeto “Cuide de você” (Prenez soin de vous, em francês).
Tudo começou com um bilhete de rompimento que Calle recebeu de seu então namorado — e aqui abro uma digressão para apontar esse belo e sensível momento de indefinição, um momento que a “obra de arte” de Calle captura tão bem, pois está posicionada, a “obra de arte”, exatamente no espaço entre o namorado e o ex-namorado, entre o sentimento e o não sentimento, entre o ligado e o desligado, entre o íntimo e o estranho; a própria obra, portanto, “representa” esse momento em que a vida estava sobreposta em dois sentimentos contraditórios. O bilhete do namorado dizia simplesmente: cuide de você. Ao invés de internalizar o choque, Calle decidiu transformá-lo em um processo artístico colaborativo e convidou dezenas de mulheres, das mais variadas origens, envolvidas nos mais variados ofícios, para reelaborarem aquele bilhete. Em tempo: o ex-namorado, Grégoire Bouillier, responsável pelo bilhete, escreveu um romance sobre sua história com Sophie Calle, O convidado surpresa (tradução de Paulo Neves, Cosac Naify, 2009).
As formas de arte são também formas de convivência, maneiras de questionar o “estar-no-mundo” e os procedimentos de aproximação e distanciamento dos corpos na sociedade. Desde a dimensão mais restrita (o bilhete, a comunicação conjugal), até a dimensão mais ampla (o espaço urbano, o embate entre centro e periferia nas cidades), essa “arte-convivência” se preocupa em extrapolar as fronteiras e, com o mesmo movimento, questionar as premissas que elaboraram tais fronteiras.
Laddaga dá o exemplo do cineasta Peter Watkins e seu projeto A comuna (Paris, 1871). O objetivo de Watkins era reconstruir cinematograficamente um evento revolucionário, com a ajuda de 200 atores amadores e um grupo de historiadores, responsáveis por preparar as pessoas em “oficinas de reconstrução histórica”. A preparação levou meses, mas o registro do filme aconteceu em três dias, em 1999, em uma fábrica abandonada na periferia de Paris — um espaço que, 90 anos antes, havia sido utilizado por Georges Mélies para a realização de seus filmes pioneiros.
O cenário de A comuna é todo conectado, com ambientes heterogêneos que se apresentam sucessivamente ao longo da gravação. A rua está dentro das casas e vice-versa. No fundo, pessoas discutem, conversam, brigam, enquanto no primeiro plano se dá a história. São múltiplos focos tomados simultaneamente, em um cenário que mescla elementos realistas (portas pintadas, tecidos de cortinas, vestimentas) e indicações deliberadas de construção (biombos, móveis de papelão). O filme tem seis horas de duração, e seu sistema de narração é quase jornalístico: apresentadores de uma ficcional “TV Versailles” visitam as ruas, conversam com os revoltosos e fazem comentários em direção à câmera, ao espectador. Esses apresentadores dão conta, paradoxalmente, de manter a ilusão do mergulho ao passado (1871) e estabelecer o vínculo com o presente da audiência, recordando o pacto fictício do projeto.
O filme vai aos poucos perdendo seu caráter reconstrutivo, e passa a mostrar as discussões que mantém os participantes do projeto. Essas discussões se referem à comuna de 1871, mas também ao filme que estão filmando. Nesse sentido, como escreve Laddaga, “A comuna é, entre outras coisas, uma espécie de documentário sobre a filmagem de A comuna”. Os atores conversam sobre o passado mas também sobre o presente, o imediato da realização do filme e também a situação francesa, o descompasso entre a população e o governo, os problemas de moradia, de migração. Esses embates ficam acelerados à medida que o filme avança, acompanhando a tensão histórica (aquela de 1871) que procura “representar”. Essa “representação”, portanto, não se dá de forma direta, mas de forma construída — e não pelo “naturalismo” da encenação, mas pela dinâmica das vozes dos indivíduos que estão ali presentes.
Uma genealogia desse procedimento poderia levar até Mikhail Bakhtin e suas ideias sobre a ficção de Dostoiévski. Ou seja, o espaço artístico como um compartilhamento de vozes, que estão reunidas não de forma pacífica e harmônica, e sim de forma desconfortável, empenhadas em um combate indefinido por preponderância. Mas a noção de participação do artista na obra ainda era muito incipiente em Bakhtin e em Dostoiévski, e é a partir desse novo desdobramento que Laddaga apresenta A comuna, o projeto de Peter Watkins. Talvez seja mais acurado dizer que Watkins é o segundo passo depois de Bakhtin e Dostoiévski, já que o primeiro diria respeito a uma presença autoral mais centralizada, ainda que também problematizada (como acontece na pintura tardia de Picasso ou na ficção de Elias Canetti). Para Watkins, não há produto final ou situação teleológica ideal, pois cada participante do filme traz consigo, em potência, uma variabilidade infinita para o fim da história (e também, sintomaticamente, para o fim da História). A disseminação da decisão sobre o objeto final, a “obra de arte”, desarma a máquina do sentido, o estabelecimento fixo das prioridades que guiam o “gosto”, a “qualidade” e a “categoria”. E, no caso específico de A comuna, a “obra de arte” incorpora também um agudo questionamento sobre o passado, sobre aquilo que o presente toma como resultado daquilo que foi feito outrora ou, em outros termos, sua herança.
Segunda conclusão provisória e possível: As artes do presente não pretendem esgotar um método ou sistema de apresentação de ideias, e sim combinar maneiras heterogêneas de composição, “articular momentos de centralização e descentralização”, como escreve Laddaga. O artista já não é mais alguém com uma personalidade sólida que encaminha em direção aos seus expectadores uma visão sólida do mundo, muito pelo contrário: a “obra de arte” é um espaço de confluência de sujeitos em transformação, em “curso de invenção”, e em direção a uma “comunidade possível”.
Onde vamos parar?, alguém poderia perguntar. Ora, em tantos lugares quanto for possível pensar. Assim opera a emergência: na articulação das conversações e na distribuição dos suportes e dos espaços, para que aquilo que se pode “pensar” possa também ser “feito”. Uma “desinvenção da modernidade”, como quer Bruno Latour, ou uma “ampliação dos âmbitos de deliberação”, como quer o coletivo de escrita Wu Ming, ou a “articulação entre uma grande intensidade de participação e a manutenção da integração entre as partes”, como quer o projeto Linux. Como na escritura de Saer e Sebald (todos eles exemplos de Laddaga), a subjetividade da arte é múltipla e se dá na errância, na construção de personagens (eu, ele, você) imersos em um tempo não da progressão, mas da sobreposição e da interação.