Karina Freitas sobre imagens de divulgação

 

Tendo sido um dos precursores da migração da literatura para a internet, com o finado fanzine eletrônico cardosonline (final da década de 1990), é de se esperar que os textos de Daniel Galera sejam focados na agilidade dos diálogos, com narrativas precisas, habilmente construídas e atuais, prendendo o interesse do leitor — pois internet dispersa, e textos produzidos nela, e para ela, tendem a ser desenvolvidos seguindo tais recursos. Talvez por isso não seja uma tarefa difícil passar pelas mais de 400 páginas de Barba ensopada de sangue (Companhia das Letras), quarto romance do gaúcho. Se seus três primeiros livros lhe garantiram uma posição importante entre os maiores representantes da literatura brasileira contemporânea, Galera prova, com esse lançamento, um amadurecimento que o permitiu enveredar confortavelmente por um campo inédito de sua obra, uma trama com ares policialescos.

 

O personagem principal (que não tem seu nome citado ao longo da história) é um professor de educação física que, após a morte do pai, se muda para Garopaba, litoral de Santa Catarina. Ao lado da cadela Beta, herdada do genitor, o personagem tenta descobrir as verdadeiras circunstâncias da morte de Gaudério, seu avô e antigo morador da cidade. O texto caracteriza-se pela construção de personagens fortes, como o do pai, que aparece apenas no início da história, mas que marcam de tal maneira por todo o restante da obra — o capítulo dedicado a apresentá-lo foi um dos destaques entre os 20 textos da edição brasileira da Granta de jovens escritores brasileiros.

 

O teor altamente descritivo e visual de sua linguagem, está lá. No entanto, Galera mergulha ainda mais no campo ficcional, sem medos. Mas ele também é defensor do discurso de que a ficção nunca está desvinculada da realidade. Segundo o autor, cada obra carrega um pouco da experiência pessoal de quem a escreve – ele mesmo morou por um tempo em Garopaba, vivência bem expressa em passagens como quando dedica uma página inteira (sem divisões de parágrafos), para descrever todo o movimento das ruas, numa ida do protagonista para um rodízio de pizza, à noite.

 

Não há lugar tão vazio quanto uma cidade de praia ao final da alta estação. Vazio existencial compartilhado pelo protagonista e sua cachorra, que por fim se adaptam muito facilmente ao cotidiano monótono da cidade. Vale destacar, novamente, a presença do cachorro na literatura de Daniel. Seu interesse pela relação dos cães com os homens, conexão entre um mundo mais primitivo, instintivo e natural, e a racionalidade do ser humano. No meio dessa jornada investigativa, existe o agravante da doença. O personagem sofre de prosopagnosia, que o impede de reconhecer traços faciais de outras pessoas, inclusive o de si próprio. Essa dificuldade de se lembrar do rosto das pessoas e de seus gestos, portanto, cria uma lacuna na interação de Gaudério entre os habitantes de Garopaba, contrastando com a clareza dos ambientes do entorno — ambiguidade perfeita para estabelecer-se o suspense da história.