Existe sempreo momento em que você hesita antes do passo definitivo. Para. Respira e olha para algum ponto indefinido, impalpável. Esse ponto nunca é físico, não pode ser concreto; é interno, subjetivo. É só a partir disso que se decide. Quem se aproveitou do momento de hesitação, costuma dizer que, assim como naquele clichê, a vida passa inteira diante dos olhos como num filme. Algumas cenas P&B; outras coloridas. Tudo muito rápido. Toda uma existência condensada em poucos minutos ou mesmo em segundos. Um curta-metragem sem diretor, mas com uma ilha de edição certeira. É assim que começa Estive lá fora, segundo romance de Ronaldo Correia de Brito, um cartão-postal enviado diretamente daquele Recife dos anos 1970, que só agora chega até nós, por um extravio do correio, por um extravio da memória.

 

Estive lá fora vê o Recife como numa foto em negativo, apesar do desejo do “salto no claro” do seu protagonista, Cirilo, jovem que abandona sua família no Sertão do Ceará para estudar medicina na capital pernambucana e que procura o irmão envolvido na luta contra a ditadura. Para além das lembranças românticas que o recifense costuma ter do seu passado (o recente e o distante), o que Ronaldo nos anuncia é uma cidade acuada, suja e suada. Um inferno, que por si só parece justificar o desejo de “salto no claro”:

“Antes de se atirar nas águas barrentas do rio Capibaribe, Cirilo lembrou as humilhações sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de impulso é apenas a cartada final.”

 

Ronaldo Correia de Brito é mais que um escritor: é um arquiteto de mundos em demolição. Foi assim com o bíblico Galileia; é assim outra vez com o Recife trancafiado pela condição política da época, que o autor denuncia como num frevo às avessas do seu segundo romance. Mas apesar do tom político, Estive lá fora não nos arrebata apenas pelo contexto histórico: a grande literatura só faz sentido quando denuncia pelo encantamento das suas palavras, e não pelos fatos sobre os quais discorre. E estamos diante de um grande encantador de palavras, ainda que desta vez elas precisem ser tão áridas.