Todo grande paísprecisa de uma grande literatura, sobretudo em tempos de profunda mediocridade como estamos afundados agora. Por isso, ou por tudo isso mesmo, a Granta — Melhores jovens autores brasileiros, publicada pela Alfaguara, tem uma importância extremamente significativa, ao revelar o verdadeiro grau estético a que chegaram nossos criadores neste começo de século 21. Mesmo que se discorde de alguma coisa — a discordância é própria desse tipo de iniciativa — ressalte-se a qualidade da publicação, com nomes já consagrados como Carola Saavedra, Tatiana Salem Levy e Julián Fuks e de novatos tipo Cristhiano Aguiar — grande surpresa — e Luisa Geisler, a menina de dois prêmios Sesc muito importantes. E para não dizer que só falei de flores, estranho, em princípio, as ausências de Rodrigo Lacerda, Marcelo Moutinho, autor de, pelo menos, um belo livro de contos, de Henrique Rodrigues, de Nivaldo Tenório, de Cecília Gianetti e de Cláudia Lajes. Talvez alguma coisa de Mara Coradello e de Adriane Myrtes. Opinião solta de quem está vendo a paisagem de longe. Nenhuma restrição, apenas lembranças. Os publicados enriquecem mesmo a literatura brasileira, tão seriamente necessitada. Quem apostou na morte da literatura e na vitória dessa fuleira cultura de massa que infelicita o país, deve estar tremendo nos alicerces.
Um detalhe fundamental: todos conhecem a técnica da ficção, os elementos internos que enriquecem a narrativa — discurso indireto livre, construção de personagem, diálogos, cenas, cenários, monólogos, solilóquios, narrativas polifônica e espontânea. O discurso indireto livre (Carol Saavedra), a ironia com estilo do tipo jornalístico (JP Cuenca), a fantasia e o sonho com uso de metáforas e símbolos da cultura popular brasileira (Cristhiano Aguiar), linguagem despojada com repetições no caminho do estilo espontâneo (Michel Laub), narrativa dialogal (Tatiana Salem Levy) e outras e outras e outras. Sem esquecer nunca que Flaubert e Henry James lutaram a vida inteira para que a ficção tivesse sempre as próprias técnicas até alcançar autonomia (como ocorrera desde sempre com a poesia — rima, ritmo, métrica, imagens, símbolos, sonetos, quartetos, baladas).
Revestido de ironia, mas com uma linguagem austera, é o conto de João Paulo Cuenca — grafado JP Cuenca —, Antes da queda, em que se conta a história de um mundo maravilhoso que está por vir, mas com antecipações, uma história de futuro, no passado e no presente, e que nunca chega a se consolidar porque eivado de falsos sonhos, ilusões desgastadas, com sintoma de absolutas desesperanças, tudo com a força de Thomás Anselmo, insólito personagem com vida boêmia e desejo de sucesso. Tudo revelado por um narrador que tem pulso forte e determinado. Não é novidade, porque Cuenca, desde muito tempo, é um escritor com a segurança própria de alguém que sabe os caminhos que vai percorrer. Técnica jornalística com aprofundamento e precisão. Bastam as noitadas etílico-eróticas de Thomás Anselmo com a mulher, no pequeno apartamento do casal, para revelar grande força criativa. Noticia-se que é um fragmento de romance cuja maravilha está por vir.
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Tanto quanto Carola Saavedra no seu conto Fragmentos de um romance, em que flagra o abismo dos seres humanos, tocada por dois personagens em solidão e busca, escrito em dois planos narrativos com discurso indireto livre objetivo com aspectos da narrativa polifônica — técnica em que as vozes dos personagens e do narrador saltam diante dos olhos do leitor (além dos pensamentos da narradora que estabelece uma terceira voz), ao contrário daquele outro discurso, indireto livre sutil, fazendo com as vozes do narrador e dos personagens se aproximem tanto que fica difícil separá-las, como as vozes do narrador e da mãe de Juan Preciado na novela Pedro Páramo, de Juan Rulfo: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo, minha mãe que me disse.” As vozes distintas e sutis somem, porque até “meu pai”, a voz é do narrador, daí o verbo dicendi ou de marcação “disseram”, a partir de “um tal”, é a voz da mãe, que odeia Pedro Páramo, daí o rancor e o segundo verbo dicendi, ou de marcação, “disse”. Fica claro que “um tal de Pedro Páramo”, não é frase do narrador, portanto se estabelece o discurso indireto livre sutil. As vozes não são ostensivas e parecem pertencer a um só narrador. O que não é verdade. Em absoluto. Em Carol as vozes são firmes e claras, objetivas. Distingue-se com a maior clareza a voz da narradora e dos personagens.
Em Cristhiano Aguiar distingue-se a maravilhosa fabulação, que conduz a narrativa para vários planos, com destaque para metáforas e símbolos, em texto circular, a lembrar os folhetos de cordel, até porque Cristhiano é o único nordestino, embora registre-se a presença de um baiano tornado paulista de Santos. A fabulação e o maravilhoso, ao lado do trágico e do silencioso, dão ao contoTeresa a justa medida de um conto preciso com simplicidade e sofisticação, de uma frase limpa e clara, na medida certa, sem exageros nem adjetivação inconsequente, elegante. Teresa é personagem de primeira grandeza na sua inquieta agonia solitária, noiva de grinalda na mão. Comovente de fina textura, Teresa amplia sua parca vida com a capacidade criadora de Cristhiano, elegante e refinado. Até mesmo no trágico sem reforço dramático, incrível habilidade. Observe-se o pleno domínio narrativo com cortes cinematográficos, a lembrar Glauber Rocha. A abertura do conto apresenta uma imagem — ou imagens — típica do cinema, congelada, embora com movimentos interiores (“Pássaros pousam nos ombros de Teresa, mas não cantam. Nos últimos dias ela costuma, sempre nos finais de tarde, sentar nos degraus que dão acesso à entrada do prédio... Eles enfeitam o rosto dela com fina grinalda, que trouxeram pendurada nos bicos.”), e que lembra os surrealistas ou pinturas populares do Nordeste, às vezes encontradas nas feiras. Em seguida, outra imagem radical, numa vertente dramática (“A lama, as pedras e uma mão aberta. E, em seguida, o leão que toma conta do príncipe”). Jogo de imagens com cortes fortes. Por fim, lembram capas de folheto, sem necessariamente regionalizar.
Michel Laub nos oferece um prato e serve outro, tudo através de incrível habilidade técnica. É assim que o título do conto éAnimais — com uma frase que conduz o leitor para uma vertente que não é o centro da história (“Quando eu tinha onze anos em Porto Alegre, meu cachorro Champion foi morto por um dobermann do vizinho”). Pronto. O leitor está seduzido para histórias de animais, que servirá apenas de pano de fundo para a verdadeira narrativa, para o tema — se é que se pode falar em tema na narrativa —, porque o que se verá, na verdade, é a relação entre pai e filho. Os dois estão sempre juntos, conversam, comem juntos, passeiam, vão a bares e cinema — perceba-se, a história de uma grande amizade. O estilo lembra a escrita espontânea, com repetições e alguma velocidade narrativa. Sem aquela despretensão de Kerouac, mas, ainda assim, despretensioso e leve, em um único instante, confuso. Ressalte-se, sobretudo, a qualidade estética do texto.
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Uma mulher volta ao Rio , depois de algum tempo, e encontra o seu principal personagem, da mulher e da história: o calor. É o que mais gosta, o que mais admira nessa bela cidade. A partir deste tema, Tatiana Salém Levy escreve um conto com os ingredientes utilíssimos de uma narrativa epistolar, ou de uma conversa ao telefone, pessoal, numa sala de apartamento ou por e-mail. Ou simplesmente mental, não telepática, mas por desejo de uma conversa, daí as intervenções de um “meu amor” ou o coloquial “você” — tom frequente do conto — , tudo numa narrativa que parecia tradicional, com um toque de qualidade, tornando-se ainda uma espécie de monólogo interior, sem que seja algo fixo, permanente, com algumas frases de efeito como “só a solidão faz sentido” ou “a terra se alimenta dos seus mortos: o presente, de seus fantasmas”, o que não é, em absoluto, um defeito.
Em Julian Fuks o que se destaca de imediato, visivelmente, sem descuido, é a criação do personagem ou dos personagens. De forma que nele, a história — ou a narrativa — está submetida ao personagem, ao que nele é definitivo ou sistemático. Os diálogos são internos com aspas. Aliás, as aspas em literatura só são mesmo necessárias quando reforçam a dramaticidade, e isto é que não falta em O jantar, belíssimo exemplo de conto que circula pelo psicológico denso, inquietante, dramático. Lembrando que as aspas são comumente chamadas de urubu da página, daí este aspecto denso e trágico. Aliás, Ismail Kadaré usa o recurso muito bem em Abril despedaçado, em especial numa conversa de pai e filho sobre assassinatos. É para isso com certeza que serve a técnica. Para dar ao texto o diferencial entre o escritor meramente espontâneo e aquele que conhece a intimidade da sedução do leitor.
É claro que aGranta ainda apresenta uma variedade considerável de técnicas, e de conquistas narrativas. Mas tivemos de nos concentrar em alguns contistas porque são muitos. Enfim, é o que se pode dizer. E agradecer que os nossos jovens escritores não tenham caído na mediocridade que afunda o pais, contando histórias por contar e isso basta, para agradar ao gosto comum ou para fazer sucesso pelas quebradas. Não, não basta, é preciso conhecer as técnicas e elaborá-las para alcançar os melhores resultados criativos. Literatura não é ciência política nem história nem sociologia nem antropologia, nem sequer música, muito menos psicanálise — mero conteúdo ou pano de fundo. Literatura é literatura, com as suas notáveis conquistas artísticas. Pertence ao campo da arte, e não à fuleira cultura de massas, às vezes confundida com a cultura popular, ou, de propósito confundida.