Coleção de ensaios analisa o nosso fascínio por criaturas monstruosas


Estamos sob o signo do vampiro graças aos 77 milhões de cópias vendidas no mundo (2,2 milhões só no Brasil) da série da escritora americana Stephenie Meyer, formada por Crepúsculo, Lua nova, Eclipse e Amanhecer. O sucesso fez a editora Rocco relançar o também pop Entrevista com o vampiro, de Anne Rice, traduzido aqui no Brasil por Clarice Lispector, em 1976. Também pela Rocco saiu Noturno, que inaugurou a trilogia do cineasta mexicano Guillermo del Toro em parceria com Chuck Hogan. Mas por que tanto fascínio pelo universo vampiresco?
“O vampiro fascina várias culturas, não só a nossa e nem só por causa do cinema. Ele tem o poder de transitar entre o mundo dos mortos e dos vivos; ele é capaz de vencer a morte e ressuscitar para uma vida eterna. Seu apelo é também sexual, pois morde as vítimas no pescoço, penetra-lhes o corpo e as leva a um êxtase, ainda que mortal. Por último, ele é difícil de destruir e poderoso o bastante para derrotar a maioria dos seus inimigos”, analisa Julio Jeha, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Crimes, Pecados e Monstruosidades, da Universidade Federal de Minas Gerais, que acaba de organizar a coleção de ensaios Da fabricação de monstros.
Jeha acredita que “o vampiro tem um apelo forte entre os adolescentes por ser, tal como muitos deles se sentem, isolado da sociedade, vítima da sua condição de não-morto e por ser um solitário em busca do amor”.
Em Da fabricação de monstros, organizado em parceria com professora Lyslei Nascimento, nove pesquisadores das áreas de literatura, cinema, design e semiótica analisam a relação entre monstros e humanos, questionam que novas aberrações poderão surgir  com os avanços da biotecnologia e surpreendem ao apontar aspectos da música de Chico Buarque e da literatura de Machado de Assis, entre outros, relacionados à monstruosidade.
O organizador vê os monstros como artifícios que usamos para lidar com uma realidade adversa: “Quando lemos uma história ou vemos um filme de monstros, aprendemos a nos comportar em situações extremas que desafiam nossa sanidade e nossa existência. Por um lado, o monstro é algo que irrompe no nosso mundo e não sabemos explicar. Por outro, ele pode representar aquilo que não queremos que faça parte do nosso mundo, por não pertencer ao que consideramos como realidade. E essa realidade tende a se confundir com projetos políticos de poder. Assim, o monstro tanto pode ser usado para nos ajudar a compreender um universo aparentemente hostil, como servir de instrumento de dominação”.
Jeha lembra que a ideia de monstro sempre foi aceita como uma sublimação para o homem,  capaz de transcender as barreiras da tecnologia, mas moralmente impedidos de ultrapassar certos limites. “O monstro seria uma espécie de artifício para rotular as infrações desses limites sociais. Sua principal função seria suprir a necessidade de termos uma válvula de escape à nossa maldade intrínseca, sublimando nossa disposição para o mal. Mas hoje a realidade, com sua carga de maldade, tem exemplos que vão do holocausto nazista a assassínios brutais, suplantando as monstruosidades mitológicas ou elaboradas pela literatura”, destaca.
“Às vezes, a realidade é tão horrenda que as histórias de monstros nos parecem um alívio. Mas esse alívio vem de ler uma história ou assistir a um filme em que pessoas comuns, como nós, são capazes de enfrentar situações em que nos deparamos com algo incomum, que nos repugna e nos ameaça”, continua.
Mas como Machado de Assis e Chico Buarque entram nessa história? Lyslei Nascimento considera a Casa Verde, o hospício do conto O alienista, um símbolo de monstruosidade, representação crítica ao desejo de poder absoluto e às infinitas formas que este  pode assumir. Ela cita passagens do livro Papéis avulsos, em que Machado refere-se à enciclopédia do francês Denis Diderot e às bestas do apocalipse, para exemplificar como esse desejo pode ser elevado ao máximo.
As cidades são vistas por Mariângela de Andrade Paraizo e Vívien Gonzaga e Silva como espaços monstruosos em que seus habitantes são forçados a serem sedutores e mutantes. A capa fantástica criada por Gringo Cardia para o disco As cidades, de Chico Buarque de Holanda, representaria as cidades contemporâneas que, ao abrigar uma imensa variedade de tipos humanos, se embaralham e se repetem infinitamente, como monstruosas criações do homem. Não é à toa que em Os saltimbancos, o personagem jumento diz, em certo momento: “A cidade é uma estranha senhora/ que hoje sorri e amanhã te devora”.