Nascido e criado em Belo Horizonte, o jornalista e escritor Humberto Werneck é o que ele mesmo chama de “mineiro não praticante”, afinal, não mora em Minas Gerais há mais de 40 anos. Desde a década de 1970, adotou São Paulo como seu lar, depois de perceber que as oportunidades de trabalho em sua cidade não eram as melhores.
Na capital paulista ele se estabeleceu como um dos mais talentosos jornalistas de sua geração, tendo trabalhado em algumas das maiores redações do país, como IstoÉ, Veja e Playboy, além de ter publicado livros elogiadíssimos como O desatino da rapaziada, O santo sujo – A vida de Jayme Ovalle, O espalhador de passarinhos, O Pai dos burros, Esse inferno vai acabar, entre outros. Esses mais de quarenta anos morando em outro estado não impediram que o autor mantivesse algumas “características mineiras”, como um senso de humor particular, adquirido não apenas durante os anos em que viveu em Belo Horizonte, também ao longo das décadas de convivência com alguns dos maiores escritores mineiros do século passado, como Murilo Rubião, Otto Lara Resende e Fernando Sabino.
Observador e narrador como poucos, Humberto Werneck se valeu de pesquisas e de suas próprias experiências para escrever O desatino da rapaziada, um delicioso passeio pela história literária de Minas Gerais entre as décadas de 1920 e 1970. Publicado originalmente em 1992 pela editora Companhia das Letras, no próximo mês o livro ganhará uma providencial e oportuna edição comemorando os 20 anos de seu lançamento. Providencial e oportuna porque ela vem muito bem a calhar num ano em que começaram a ser reeditadas, também pela Companhia das Letras, as obras de dois dos maiores escritores mineiros: Pedro Nava e Carlos Drummond de Andrade.
Ao longo de 2012 ganharão novas edições, pela mesma editora, as obras dos também mineiros Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino. Isso sem contar com o prosseguimento da reedição dos livros de Otto Lara Resende, iniciada no fim de 2011 com a publicação de O Rio é tão longe – Cartas a Fernando Sabino e da edição revista e ampliada de Bom dia para nascer, projeto coordenado, a propósito, pelo próprio Humberto Werneck.
“A história que aqui se vai contar”, diz Werneck no início de O desatino da rapaziada, “começa no ano de 1921, no instante em que a mais famosa de suas personagens, um adolescente magrinho, de óculos, entra numa redação de jornal, na rua da Bahia, em Belo Horizonte. E termina, meio século depois, com alguns rapazes abandonando outra redação, não longe dali, na avenida Augusto de Lima”. “Entre esses dois momentos”, prossegue o autor, “o fio de nossa história vai e volta, serpenteia, percorre outros pontos do mapa de Minas Gerais — embora quase toda ela se passe no centro de Belo Horizonte”.
O “adolescente magrinho” a quem Humberto Werneck se refere não é outro se não Carlos Drummond de Andrade, que naquela época contava 18 anos e fora entregar, na redação do Diário de Minas, sua primeira colaboração para o jornal.
Drummond foi até o Diário de Minas porque recebia muito pouco do jornal que publicava seus textos até então, e no qual havia estreado na “grande imprensa” mineira, o Jornal de Minas. Originalmente oposicionista — ao ser criado, no início do ano de 1899 —, o Diário seria, em novembro do mesmo ano, vendido ao PRM (Partido Republicano Mineiro), “do qual passou a ser órgão oficial”. “Como o PRM se eternizava no poder, o jornal se tornou, também, um órgão oficioso do Palácio da Liberdade — que, discretamente, lhe estendia algum dinheiro”.
É a partir deste pequeno acontecimento que o jornalista traça não apenas um panorama dos destinos de várias gerações de literatos mineiros, mas de inúmeros jornais e revistas que surgiram — e, no caso da grande maioria, acabaram — no estado entre os anos 1920 e 1970.
O trecho a seguir dá uma ideia da efemeridade dessas empreitadas: “Em seus primeiros 25 anos de vida, a cidade (o autor se refere a Belo Horizonte, fundada em 1897) viu brotarem nada menos de 160 publicações, sem contar aquelas, numerosas, que nasceram e se extinguiram sem deixar traço nos arquivos e bibliotecas. Em 1930, passava de duzentos o número de jornais surgidos desde a inauguração da capital, 33 anos antes”. Se forem contabilizadas as revistas e jornais criados em outras cidades do estado, os números são ainda maiores.
Uma das publicações mais importantes desse período foi criada em 1927 e teve apenas seis números. Chamava-se Verde, tinha um viés modernista e, entre seus editores, estava o jovem Rosário Fusco, então com 17 anos, mineiro de Cataquases. Um dos casos que Werneck conta sobre Fusco, a quem define como “audacioso e petulante, além de muito talentoso”, é o do bilhete que ele enviara a ninguém menos que Mário de Andrade, pedindo que este enviasse “uma bosta qualquer” para ser publicada na revista.
Outro fato marcante sobre Verde é que ela conseguiu não apenas ter sua relevância reconhecida fora dos limites de Cataguases, mas contou com a colaboração de autores de diversos lugares do Brasil, como o já citado Mário de Andrade — em poema redigido a quatro mãos com Oswald de Andrade —, Sérgio Milliet, Marques Rebelo, Murilo Mendes e até mesmo Carlos Drummond de Andrade.
Mas talvez a publicação mais importante criada entre 1920 e 1970 em Minas Gerais seja o Suplemento Literário de Minas Gerais, fundado em 1966 e idealizado por Murilo Rubião, mestre do fantástico brasileiro. Inicialmente semanal, o Suplemento continua de pé ainda nos dias de hoje, porém em edições mensais. Por lá passaram, seja em suas páginas ou em sua redação, nomes como Ildeu Brandão, Duílio Gomes e Wander Piroli, autores mineiros de grande talento que não têm o devido reconhecimento, e o próprio Humberto Werneck.
Apesar de ter sua relevância diminuída durante alguns anos, como destaca Werneck em um dos capítulos do livro, o Suplemento é certamente uma das maiores referências literárias do país. Além de ter revelado diversos talentos — e não apenas mineiros, diga-se —, o Suplemento não se limita a publicar contos, trechos de romances e poesias, mas também reflexões, na forma de artigos e críticas, sobre a literatura brasileira. Atualmente o Suplemento é dirigido por Jaime Prado Gouvêa, autor do belíssimo romance O altar das montanhas de Minas, entre outros livros, que já havia trabalhado no veículo em outras oportunidades.
Minas está em todo lugar
O personagem mais famoso de O desatino da rapaziada está presente em todas as décadas percorridas pela obra. Carlos Drummond de Andrade é uma referência não apenas para as gerações que o conheceram quando era um dos maiores poetas do país, mas até mesmo para a sua própria geração, que já o tinha em alta conta.
O mesmo acontece se a relação é feita com os autores mineiros retratados por Werneck e os momentos históricos pelos quais eles passam: utilizando uma expressão informal, pode-se dizer que os mineiros “estavam em todas”. Até mesmo nas intrincadas relações entre imprensa e política, que geraram uma série de episódios, dos quais um dos mais impressionantes envolve o cronista Rubem Braga — que, apesar de natural do Espírito Santo e, posteriormente, ter adotado o Rio de Janeiro como lar, foi mineiro durante algum tempo.
O ocorrido se deu em 1933, quando Braga foi a Ouro Preto “cobrir uma visita do ministro da Marinha, almirante Protógenes Guimarães” à cidade. Por ser desafeto de um dos patrões do cronista, um assessor da comitiva do ministro, Augusto de Lima Júnior, tentou de tudo para sabotar a cobertura. Porém, de nada adiantou: Rubem Braga “não apenas furou o cerco armado pelo assessor como arrancou do ministro uma declaração desastrada”, e, além disso, “recheou uma reportagem com detalhes constrangedores para alguns integrantes da comitiva”.
Conta Werneck: “Identificado, no trem de volta para Belo Horizonte, como o autor do texto, Rubem por pouco não foi obrigado a engolir, literalmente, o que havia escrito. Correu o risco, também, de ser atirado pela janela. Salvou-o Gustavo Capanema, secretário do Interior, que providencialmente embarcou em Sabará”.
As gerações de autores das Minas Gerais influenciaram e continuam influenciando muita gente. Tanto pelo fato de algumas obras publicadas naquelas décadas terem se tornado clássicas — O encontro marcado, de Fernando Sabino, e O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, para ficar em apenas dois exemplos — quanto pelo fato de alguns jornalistas e escritores retratados no livro — e também o seu autor — ainda estarem na ativa e servirem de referência para as novas gerações. Essa influência pode ser indireta, com jovens — ou não tão jovens — escritores e jornalistas de diversos cantos do Brasil tendo alguns mineiros do passado e do presente como “mestres”, quanto direta, e um dos maiores exemplos disso reside no auxílio que Fernando Sabino deu à escritora Clarice Lispector. A história não consta em O desatino da rapaziada, mas ilustra bem essa influência: às voltas com a finalização de um novo romance, Clarice envia o original a Sabino, que o devolve repleto de sugestões. Apesar de mais velha que Fernando, Clarice aceita boa parte dos conselhos, inclusive um que afeta o título da obra.Em vez de A veia no pulso, Clarice escolhe um dos títulos sugeridos por Sabino: A maçã no escuro.
A essa altura, não apenas os quatro mineiros do apocalipse já haviam abandonado Belo Horizonte. Assim como eles, vários outros autores das Minas Gerais deixaram a terra natal e se espalharam em terras cariocas ou paulistas. Alguns voltaram para de lá não mais sair, como Luiz Vilela, Jaime Prado Gouvêa e Roberto Drummond. Mas Sabino, Otto Lara e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, só retornaram a Minas em visitas de ocasião.
Além dos fatos históricos importantes, Humberto Werneck coloca à baila casos hilariantes que parecem pequenas cenas de pura ficção, como quando cita o árbitro de futebol Alcebíades Magalhães Dias, posteriormente convidado a escrever sobre o assunto que lhe cabia na Folha de Minas, nos anos 1960. Alcebíades era “conhecido como Cidinho Bola Nossa desde o dia em que, no calor de um clássico, atuando como bandeirinha, pôs à mostra sua paixão pelo Clube Atlético Mineiro. ‘Bola nossa!’, deixou escapar Cidinho, em seguida a um chute que saíra pela lateral do campo”.
Essa mistura de História, histórias, casos e “causos” (ou seja: a ficção invadindo a realidade sem pedir licença), aliada à prosa exemplar de Humberto Werneck, faz de O desatino da rapaziada uma leitura leve, divertida, além de obra fundamental para entender um pouco da cena literária mineira, e mesmo brasileira, de boa parte do século 20.