Foi pela ausência que Edson Nery da Fonseca relembrou sua vida em livro

Praia de Boa Viagem, década de 1940. O jovem bibliotecário Edson Nery da Fonseca era responsável pela seção de poesia do jornal O praiero, editado pela Prefeitura do Recife e distribuído aos frequentadores da praia. Em um dia que publicou o poema Consolo na praia, de Drummond, Edson foi abordado por um médico que lhe confessou: “Muito obrigado porque a leitura do poema de Drummond fez com que eu deixasse de me suicidar nesta manhã”. Esta é uma das passagens que constam do Vão-se os dias e eu fico — Memórias e evocações, do hoje professor emérito de biblioteconomia pela Universidade de Brasiília, para quem vida e literatura estão intimamente ligadas.
O autor reúne vários requisitos para escrever uma boa biografia. A sua longa experiência pelos quase 90 anos de vida, o seu círculo de amizade com figuras como Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Darcy Ribeiro, Otto Maria Carpeaux, entre outras, e sua longa relação com livros como bibliotecário já impunha um texto que registrasse o que ele tão bem narra em conversas. É de surpreender, na realidade, que só agora a obra esteja sendo lançada. De fato, o texto que agora é publicado pela Ateliê Editorial estava pronto há cerca de três anos, mas dormia nas gavetas da Cosac Naify sem resposta.
O título tem o misto de beleza, pela construção, e melancolia, pelo que evoca. Vão-se os dias e eu fico é uma constatação de quem completa, agora em dezembro, 88 anos e viu grande parte dos seus amigos serem enterrados. Numa velhice que lhe tirou parte da mobilidade, mas aparentemente nem uma sinapse da sua memória, ele inicia as recordações pelo o que deixou de fazer. Nisso segue o mestre espanhol Ortega & Gasset, para quem se conhece uma pessoa pelo o que ela deixou de fazer, segundo Edson ouviu do orteguiano Julián Marías em uma conferência.
Assim, o livro segue uma curiosa estrutura de capítulos como “Por que não me chamo Antônio”, “Por que não sou bacharel em direito”, “Por que deixei de fazer crítica literária” entre outras incompletudes.
Mas não só de negativas compõe-se Vão-se os dias e eu fico. O professor lembra como gostou de fazer parte do exército na década de 1940, quando o Brasil montava bases para dar sustentação à guerra na Europa. Entrou como pracinha – sofrendo as humilhações de estar na base do ranking – e depois conseguiu passar no vestibular do CPOR, já com um pelotão para comandar.
A longa amizade com Gilberto Freyre está presente no texto, mas de forma bem dosada, sem deixar com que a figura magnética do sociólogo dominasse as lembranças. Nessas memórias, Edson aborda o trabalho de construir bibliotecas, cursos nos Estados Unidos, aventuras pela África, as malandragens burocráticas da vida em Brasília e até como uma mãe-de-santo lhe alertou de uma ameaça de morte.
Na obra fica claro como a literatura se reflete na vida de Edson Nery da Fonseca. É através de versos que ele reflete a vida, reza e comemora. É uma cultura literária que serve para pensar sobre si e o mundo, não para ostentação ou participar de academias de letras, que hoje existem tantas quanto linhas de ônibus que passam no Recife.
E um dos pontos gratificantes do seu livro é ver que também no papel a poesia entra em histórias com a mesma naturalidade com que Edson o faz em conversas. “Na guerra civil do México o padre ébrio e devasso perguntava a Deus por que o poupava, enquanto os virtuosos irmãos no ministério sacerdotal eram fuzilados. Quando morre um amigo e companheiro de geração – e já se foram quase todos! – eu tenho feito a mesma pergunta: por que, meu Deus, ainda não chegou minha vez? Por que, como nos versos de Guillaume Apollinaire, ‘Vienne la nuit sonne l`heure / les jours s`en vont je demeure’?”
Não tão natural, mas um pouco como justificativa e alívio, soa o capítulo “Por que não me casei”. Nele Edson fala abertamente de sua homossexualidade, mas rejeita o que alguns chamam de “sair do armário”. O leitor percebe um conflito entre o homem que quase seguiu a vida monástica beneditina e o que não pôde desfrutar do sacramento do casamento, o que ele admite como algo divino e destinado à propagação da espécie. Edson é contra o que chama de “palhaçada” do orgulho gay e o que alguns rotulam de “opção homossexual”, pois para ele não se trata de uma opção, uma vez que “só masoquistas podem optar por uma vida social difícil como é a dos que amam pessoas do mesmo sexo”. Resumindo, o autor não faz uma defesa da homossexualidade, mas aborda como isso faz parte da sua vida e como ele a viveu “com muita dignidade”, incluindo a dor que sofreu por ter que rejeitar o amor de três mulheres que poderiam ter se casado com ele.
A obra deve ganhar uma espécie de complemento, um outro livro com perfis biográficos de pessoas interessantes que o bibliotecário conheceu. Já em avaliação por uma editora, o futuro livro tem por título Estão todos dormindo, um trecho de um poema de Manuel Bandeira. Falo em complemento e não outra obra, pois de fato em Vão-se os dias e eu fico há a sensação de que o autor teria muito mais para falar sobre tantos amigos interessantes que teve e este livro – até pelo tamanho de pouco mais de 200 páginas – não explora. O que, de certa forma, deixa a leitura mais compacta e acessível. Felizmente, os dias passaram e Edson Nery da Fonseca ficou para escrever este importante relato.