Um prato de comida não é apenas um prato de comida: traz em si ingredientes como cultura, afeto e memória. A chef Gabrielle Hamilton, autora de Sangue, ossos & manteiga: a educação involuntária de uma chef relutante, sabe bem disso. Seu livro autobiográfico entrou na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos e vem sendo celebrado como um dos melhores já escritos sobre cozinha. Exageros à parte, a obra é mais um sinal de que a gastronomia há muito deixou de ser assunto secundário para virar menu do dia, inclusive na literatura.

 

Como indica o subtítulo, Gabrielle estava longe de ser uma criança que sonhava em usar uma “toque blanche”, aquele chapéu branco de chef, e um dólmã, a roupa tradicional da profissão, quando crescesse. Os bicos na cozinha não foram uma escolha: simplesmente aconteceram. Atualmente no comando do festejado restaurante Prune, em Nova York, ela não passou por faculdade para aprender a cozinhar, mas fez isso à moda antiga, na prática, lavando muita louça até chegar ao fogão.

 

Já o contato com a literatura não foi nem tão involuntário, nem tão relutante: desde pequena ela enchia caixas de cadernos com seus escritos, que buscou burilar fazendo um mestrado em ficção pela Universidade de Michigan, aos 30 anos. Gabrielle já escreveu para revistas cultuadas como a New Yorker e foi responsável pela Chef’s Column do jornal The New York Times por oito semanas. Suas colunas também são presença constante na antologia anual Best Food Writing, que reúne textos da área.

 

Para Anthony Bourdain, o livro de Gabrielle é o melhor relato já escrito por um chef em todos os tempos. (O autor de Cozinha confidencial foi esperto ao excluir dessa gama outras “food writers” que nunca foram chefs, mas sim ótimas cozinheiras, como M. F. K. Fisher e Elizabeth David.) No entanto, comparar os livros de Gabrielle e Bourdain, conhecido por mostrar a realidade nua das cozinhas, não leva muito longe. A abordagem dela não tem o tom de “denúncia” e surpresa que fez a celebridade do então chef do Les Halles.

 

Sim, Gabrielle teve várias namoradas, usou cocaína e até passou fome, mas quem espera ver cenas de sexo, drogas e rock’n’roll vai se decepcionar. É o trabalho duro na cozinha que sobressai, em uma prosa ora crua, ora amorosa. Mesmo sem entender muito bem como foi parar na frente do fogão, os sinais ficam claros para o leitor desde o início, quando ela lembra o cheiro de carneiro assado nas festas da sua infância, na Pensilvânia. Ainda assim, ela se surpreende quando, aos 34 anos, abre as portas do seu próprio restaurante.

 

Bourdain não é o único chef embasbacado com a pena da moça. “Gabrielle aumentou o potencial e elevou o nível dos livros sobre comer e cozinhar. Vou ler este livro para meus filhos e queimar todos os que escrevi por não serem nada sequer próximos deste aqui. Depois vou tentar uma vaga como lavador de pratos no Prune para aprender com a minha nova rainha”, derrama-se Mario Batali, do Babbo. “As histórias que Gabrielle conta aqui são tão adoráveis quanto os pratos maravilhosos que ela prepara diariamente”, elogia o francês Daniel Boulud.

 

SEM FASTIO
A relação complicada com a família é pano de fundo da história. Quando reencontra a mãe depois de 20 anos sem falar com ela, sequer se lembra ao certo do motivo do afastamento. O irmão Todd, que trabalha em Wall Street e com quem mal fala, é acionado para contratar um advogado quando ela se envolve em um desvio de dinheiro em um restaurante onde era garçonete. A irmã Melissa, por outro lado, aparece como quase um anjo da guarda que surge nos momentos mais difíceis.

 

Aos 19 anos, Gabrielle faz um mochilão na Europa naquele que foi, na época, o inverno mais frio do continente nos últimos 50 anos. Passa por países como França e Grécia e lá aprende muito sobre comer e cozinhar, além de experimentar o não comer pela primeira vez, com os US$ 1,2 mil em traveler’s checks rapidamente esgotados. Considera que a fome foi tão importante no processo de se tornar uma cozinheira como saber lidar com facas – e ser alimentada por estranhos passou a ser inspiração para o acolhimento dos clientes no Prune.

 

“Passar tanta fome naquela viagem me levou a passar um tempo tão enorme sonhando com comida, que cada ânsia se tornou fanaticamente peculiar. A fome nunca era geral, de apenas algo, qualquer coisa, para comer. Minha fome se tornou tão específica que eu podia nomear cada um de seus cantos e dobras. Salgado, quente, sumarento, gorduroso, doce, seco e crocante, fresco e úmido, e assim por diante.” Antes de aprender a lidar com medidor de água ou remoção de lixo, Gabrielle sabia que queria dar de comer às pessoas e saciar sua fome.

 

A experiência da chef relutante se deu nos ambientes mais variados, como em uma colônia de férias em Massachusetts, onde ela se encanta com Emma, uma garota que gosta de vinagre balsâmico, queijo parmesão e pimenta-do-reino. Tudo se explica quando ela conhece o pai da menina e a ficha cai. “Tem um jeito, um jeito particular, que pessoas que trabalham na área usam para conversar umas com as outras sobre comida, e dá para dizer, depois de minutos, que eles fazem parte de sua grande família.” Era Mark Bittman, autor de livros de receitas.

 

Há também passagens por bufês de embrulhar o estômago e fazer o leitor pensar duas vezes antes de se arriscar a levar a mão ao canapé na próxima festa. Não demora para ela se dar conta de que trabalhava há 20 anos na cozinha quase sem querer, desde que começou a lavar pratos, e lembrar do que ouviu da escritora Jo Carson na faculdade: “Cuidado com o que você aprende a fazer bem, porque é o que vai fazer pelo resto da vida.” E, pelo menos até agora, a profecia se concretizou na vida de Gabrielle.

 

COMIDA DE VERDADE
A inspiração para o Prune vem da simplicidade dos sanduíches com manteiga e açúcar comidos no lanche na infância e do tutano de vitela preparado pela mãe. “Nada de espuma, nem comida ‘conceitual’ ou ‘intelectual’: apenas as coisas doces, salgadas, amidoadas, sumarentas, frescas que se deseja comer quando se está com fome de verdade. Nada se erguendo do prato, porções generosas, nada de emulsões, nada de coquetéis de camarão servidos em copos de martíni com a pata pendurada para fora da borda.”

 

Aberto em 1999 “para cozinhar para meus vizinhos”, como disse Gabrielle ao New York Times na época, o Prune faz sucesso com um cardápio minimalista que em nada remete às experiências da cozinha molecular espanhola hoje em voga. É comida de verdade – com pratos como omelete de parmesão, tripa à milanesa e coelho ao molho de vinagre – que faz parte do menu. A banda Velvet Underground rolando no som completa o cenário. Com essa receita, ela foi escolhida a melhor chef de Nova York em 2011 pela James Beard Foundation.

 

Com tantas horas no batente do restaurante, é lá que ela conhece Michele, cliente da casa, médico e 11 anos mais velho do que ela. A relação com o marido – do encanto inicial às rusgas posteriores – e com a família dele ocupa boa parte do final do livro, com ênfase ao contato com a sogra Alda. Como Gabrielle não fala italiano e Alda não fala inglês, é pela linguagem da cozinha que as duas se entendem – e como se entendem! A chef passa a esperar ansiosamente pelas férias anuais na vila à beira-mar.

 

No Sul da Itália, mais encantamento, dessa vez por um velho feirante. “Claro, estou apaixonada pelo cara banguela com as calças escancaradas. Ele é tudo com o que cresci, ele é o fim de uma era, ele é o último exemplo do que era saber comer e saber plantar. Uma época em que simplesmente plantávamos e comíamos, e não falávamos tanto sobre o assunto. Quando não ficávamos andando pela cidade toda nos vangloriando sobre o artesanal, o local, o orgânico, o blá-blá-blá. Simplesmente íamos à fazenda e comprávamos leite.”

 

Com o passar do tempo, o paraíso italiano se transforma em inferno. E ela fica entediada toda vez que alguém a conhece e se admira como se ela tivesse tirado a sorte grande: “Oh! Marido italiano? Férias na Itália todo ano?” Até a relação com Alda estremece quando ela começa a perceber não mais o frescor do molho fervendo nas panelas ou a espessura quase transparente da massa feita à mão, mas sim o bechamel frio instalado no armário desde que foi preparado no dia anterior.

 

CHECKLIST: TER BEBÊ
Dois filhos entram nessa equação e Gabrielle nem pensa em parar, apesar de perceber que tem limites: “Embora eu nunca quisesse ou esperasse ser o tipo de grávida que repousa languidamente à tarde enquanto coloca fitas de Mozart para tocar perto do útero, ficar agachada no tapete da cozinha com uma esponja verde cheia de sabão, chacoalhando meu feto com uma sequência de xingamentos de fazer enrubescer um caminhoneiro... Bom, com certeza, também não era essa a mulher que eu queria ser.”

 

Quando dois funcionários pedem demissão às vésperas do seu parto, a chef explode. “Ter bebê” é literalmente mais uma tarefa na sua lista, que inclui ainda “resolver calda de romã” e “trocar filtros nos exaustores”. “Em vinte anos de crônica e compulsiva produção de listas de coisas a fazer, eu havia composto algumas com sequência francamente beckettiana. E é exatamente a anomalia dessa sequência – o non sequitur – que faz algumas daquelas listas merecerem um lugar em minha caixa de lembranças”, conta.

 

As jornadas de infindáveis horas em pé na cozinha, no entanto, foram uma boa preparação para a maternidade, segundo a chef, já acostumada a noites sem dormir. Tanto que ela prefere ver o copo meio cheio e não meio vazio: “Em algum momento entre o filho número um e o filho número dois, chef e proprietária, amamentar e preparar e cozinhar, seguro contra acidente de trabalho e refrigeração comercial, aprendi a reavaliar a quantidade de tempo que tenho para dormir como uma excelente soneca em vez de uma miserável noite de sono.”

 

Trocar uma fralda parece amarrar um frango, conclui. Rotular alimentos para a escola é o que ela já faz desde sempre nas câmaras frigoríficas, acredita. “Como a mulher que está acostumada com sua integridade física e pessoal suporta o sentimento de canibalização que constantemente pode tomar conta da sua mente quando você amamenta, como se estivesse sendo devorada viva, não em pedaços monstruosamente nojentos, mas como uma legião de delicadas e benignas lagartas fabricando renda a partir de uma folha?”

 

Gabrielle ironiza as pautas das revistas de cozinha, que trazem temas “relevantes” como “o que vestir em seu restaurante caro favorito” ou “os utensílios de cozinha favoritos do chef”. “É difícil trabalhar numa área em que as manchetes são essas. Ou pelo menos eu achava meio desmoralizante pensar que todo dia minha contribuição mais significativa para o mundo era fazer ragu de alcachofra em quantidade suficiente para o jantar de um ensaio de casamento, naquela noite.” Como se ser mãe e chef não fosse suficiente, resolveu ser escritora.

 

Acostumada a servir desde sempre, ela sequer compreende como os cozinheiros podem ser considerados estrelas pela mídia. “O novo status de chef como celebridade me confunde ainda mais. Eu costumava ser uma ‘empregada’, chegando pelo elevador de serviço, respeitando seu pedido de um bife bem passado, molho à parte, só um cubo de gelo em seu copo de Smirnoff.” Sem firulas, direta, simples, mas sempre bem cuidada: tanto a comida quanto a prosa de Gabrielle procuram seguir esse caminho. Não é uma receita complicada, mas funciona.

 

Renata do Amaral é doutoranda em Comunicação Social.