Um leitor de Lygia Fagundes Telles aprende cedo a importância de vivenciar as sombras que sua narrativa forma: é ali que se manifesta a essência das suas personagens. Principalmente nos textos que contam com a intervenção do sobrenatural, como os seis contos que formam a coletânea Histórias de mistério, presenteada com uma bela reedição pela Companhia das Letras.

 

Lygia Fagundes Telles nos faz questionar a procedência daqueles fatos na mesma medida que envolve o leitor numa rede costurada por um enredo elegante e envolvente. Sem nos darmos conta, estamos presos a ela e só atinamos para a armadilha quando a credibilidade do verossímil é quebrada. Afinal, a metamorfose que transforma um casal em um passarinho e uma borboleta em Lua crescente em Amsterdã é fruto dos efeitos alucinógenos dos seus suspeitos cigarros ou não?

 

O medo gerado pelo desconhecido, por ações que não são explicadas pelas leis naturais do universo, atravessa a curta estadia de duas primas numa pensão onde formigas, no seu tão ordinário quanto assombroso esquema operário, remontam o esqueleto de um anão, em As formigas. O sombrio também está entre o absurdo e o delírio que envolvem o protagonista de A caçada, morto pela estranha obsessão que nutre por uma antiga peça de tapeçaria estampada com a imagem de uma caçada.

 

Com O jardim selvagem temos sob olhar de uma criança a dúvida, palavra essencial para cada conto de Histórias de mistério, sobre a morte do tio. Teria ele cometido suicídio, como todos acreditam, ou sido vítima de sua recente esposa como uma figura contraditória e suspeita nos detalhes captados pela visão da menina?

 

Para além do final trágico de A caçada e O jardim selvagem, o tema da morte também é presente em História de mistério através de caminhos que emulam a delicadeza do olhar de Lygia junto com a forte carga emocional que suas histórias alimentadas pelo terreno do surreal ou do fantástico carregam. É caso de Natal na barca, no qual a narradora, ao entrar em contato com a miserável história de uma mulher que atravessa o rio numa barca com o filho doente no colo, vai construindo a crença de que a criança está morta. Quando, no final, descobre-se que a criança está viva, assim como aquele rio estará quente e cristalino na manhã seguinte. Uma misteriosa fábula de esperança.

 

Já em Onde estivestes de noite?, Lygia Fagundes Telles presta uma homenagem à amiga Clarice Lispector nesse depoimento que entrelaça fatos (ou ficções?) que envolveram Lygia, aqui narradora e personagem, no dia da morte de Clarice. Síntese perfeita das três vertentes primordiais da obra de Lygia – invenção, memória e mistério – reunidas aqui para endossar o quão particular e rico é o projeto literário da senhora que um dia já assumiu recorrer ao mistério para tornar a vida, esse duro suporte da existência e da literatura, suportável.

 

Talles Colatino é jornalista.

 

Contos
Histórias de mistério
Autora - Lygia Fagundes Telles
Editora - Companhia das Letras
Preço - R$ 24,50
Páginas - 64

 

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