Há um momento em que a vida se impõe sem heróis ou slogans. É o que a colombiana Laura Restrepo (convidada da Flip 2011) problematiza no (quase) autobiográfico Heróis demais. “Meu primeiro, e último, livro com essa temática”, já revelou em entrevista. Ex-jornalista e, desde os anos 1990, um dos maiores nomes da literatura latinoamericana, ela aqui revela os ganhos e perdas da sua geração na militância contra a ditadura militar, denominador - político - comum do Continente entre as décadas de 1960 e 1970. 

Seu acerto de contas com o passado não seria completo sem um certo olhar de desdém voltado a quem não cresceu/amadureceu sob o fantasma fascista. Essa perspectiva é explorada na frustração de uma mãe com os hábitos alimentares do filho, que se nega a comer frutas ou legumes: “Se sentia indignada, preocupada e violentada por ele ter semelhante aversão por qualquer alimento que tivesse mais de uma cor, mais de uma textura, um sabor que não fosse elementar. Achava que atentava contra toda norma de sobrevivência, quase de decência, essa predileção pela comida branca e mole, o leite, o pão, o sorvete de baunilha, a massa, como se temesse levar à boca coisas surpreendentes, escuras ou desconhecidas. Como se o interior dele só aceitasse as primeiras comidas, as de antes do medo”.

Mas seu ar indignado não se restringe às novas gerações. Olha para o que “restou” dos seus contemporâneos com certo pesar. A persona que Laura criou para esse livro fala de pessoas viciadas em ditadura, de homens e mulheres que amadureceram como zumbis, à caça dos mesmos velhos fantasmas, quando inimigo já é outro.

Assim, eternamente presos à história política, esses homens e mulheres lidam com suas decisões pessoais como guerrilheiros: na trama do romance, pai rapta o próprio filho de dois anos como gesto desesperado para recuperar casamento falido; mãe impõe silêncio sobre o passado. Doze anos mais tarde, um longo diálogo entre mãe e filho procura colar/entender o episódio. Até onde uma ditadura interfere nas relações pessoais? Até onde ela dá o sentido da vida desses adversários? Questionamentos que a autora faz ecoar em Heróis demais. Questionamentos típicos da literatura de
língua hispânica.

“Não quis escrever uma história de militantes arrependidos. Quis mostrar como a tirania permeia tudo, até os que estão contra ela. A luta política cria uma relação estreita com o inimigo. Até que ponto você não termina se parecendo com ele? Na relação entre mãe e filho isso fica claro. O único meio que o filho tem para chegar ao pai é uma mãe que não quer recordar o passado”, comentou.

Heróis demais nos faz pensar no estranho silêncio da literatura brasileira diante do trauma da ditadura militar, quando nossos “vizinhos” são tão empenhados em jamais permitir que o passado seja amortecido ou esquecido. E mais: com esse romance, Laura nos revela um jeito delicado e peculiar de recuperar e problematizar lembranças pessoais, que insistem em dizer tanto sobre todos nós.

Romance
Heróis demais
Autora - Laura Restrepo
Editora - Companhia das Letras
Preço - R$ 39,50
Páginas – 235

 

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