Estava à procura de um guia de viagens para Lisboa e justamente o título que havia decidido folhear na livraria trazia um “pedido de desculpas” (uma provocação?) na introdução. O texto ressaltava que, apesar do histórico caráter desbravador do povo português, esta não é uma cidade cosmopolita, com coloridas atrações 24 horas, tal e qual Londres ou Berlim. Conflitos e crises econômicas teriam pisoteado o orgulho lisboeta e transformado seu território num lugar ensimesmado e de prazeres clandestinos. Não pude evitar de questionar como um guia descumpre, logo de cara, seu papel de seduzir turistas.
A tal advertência bem poderia implicar numa questão curiosa: se a máxima do turismo exige paradas que abarquem o maior número de culturas e referências por metro quadrado, o pecado de Lisboa seria não oferecer tal visão panorâmica do mundo, e sim seu velho reflexo reincidindo cheiro de sardinhas e saudades.
Essa história me trouxe à lembrança uma das muitas entrevistas que fiz com o biógrafo José Paulo Cavalcanti Filho, durante seu percurso de desentranhar os pormenores de Fernando Pessoa, que resultou em Fernando Pessoa: Uma quase autobiografia. “Esse sujeito teve uma vida desinteressante, que pouco se movimentou para fora do seu metro quadrado de sempre”, assim definiu seu objeto de estudo, sem medo de lançar para si um slogan pouco mercadológico. Mas por que um biógrafo dedicaria anos e anos a entender um objeto de estudo de trajetória tão pouco espetacular?
No caso de José Paulo, a dedicação foi impressionante: ele invadiu prédios públicos, tentou a exumação do cadáver de Mario Sá Carneiro, na esperança de encontrar sua correspondência com Pessoa, “cruzou” com o fantasma do poeta pelo Chiado e se infiltrou no estranho mundo dos leilões literários. Se a vida de Pessoa não foi lá muito interessante, a sua, ao menos, se tornou durante a pesquisa.
A definição de José Paulo é fruto da percepção de um leitor atento (ou obcecado, para fugirmos de eufemismos), que nos aponta que Pessoa não tinha outra vida senão na sua obra. É nela que verte toda sua emoção, todo o seu sentimento, toda a sua diligência. Antes de “ler” a vida de um escritor, é preciso ler sua obra, deixa como lição o biógrafo.
Assim, acerta ao fundir seu texto com as palavras de Pessoa, numa curiosa simbiose de informações/ percepções. Teria o poeta feito da sua literatura um enorme quebra-cabeça, à espera de alguém paciente a ponto de unir todas suas minúsculas peças? É o que tal estratégia estilística nos faz pensar. Sem receio de polêmicas, oferece nova versão para a causa da morte do Pessoa, afirma que ele foi apaixonado por Ophélia Queiroz, ressalta as suas picuinhas nada lisonjeiras com o Brasil e, finalmente, nos contamina com o desejo de (re)ler seus escritos. Pessoa pode até ter vivido sem grandes sobressaltos, mas o percurso que José Paulo nos oferece faz emergir o que havia de fascinante por trás desse discreto senhor de bigodinho, tão ensimesmado quanto sua Lisboa da vida inteira.
Biografia
Fernando Pessoa, uma quase autobiografia
Autor - Jose Paulo Cavalcanti Filho
Editor - Record
Preço - R$ 67
Páginas - 96