Um amigo comentou, há pouco, que fazia uma reportagem sobre colecionadores de ônibus em miniatura. Achei meio específico (e ele também) a obsessão/mania/hobbie dos seus entrevistados, mas como censurar? Na hora, começamos a comentar o quanto (digamos) “certas preciosidades” são bandeiras, em geral, erguidas pelo sexo masculino. Homens colecionam miniaturas (tal e qual os citados ônibus), selos, moedas, álbuns de figurinhas que só fazem sentido por que nunca serão completados, montam torcidas organizadas de uma violência quase canibal, usam saltos que nenhuma mulher se arriscaria a usar, porém acham uma injustiça quando são envolvidos numa singela D.R. (abreviatura bastante mão na roda para a expressão Discussão de Relacionamento).
Homens são obsessivos; mulheres, tagarelas emocionais – ah, esses clichês que somos obrigados a carregar...
No seu primeiro livro lançado no Brasil, o romance Meu tipo de garota, o escritor bengali Buddhadeva Bose (1908-1974) desconstrói essas prerrogativas e fala de homens que não camuflam sensibilidade com arroubos obsessivos por ônibus em miniaturas e saltos plataforma. Seus personagens masculinos (quatro, tal e qual o número de garotas de Sex and city, numa comparação meio esdrúxula) se revelam frustrados e emocionalmente frágeis e falam, falam e falam sobre as agruras de serem garotos com o coração aos pedaços. Mas é claro que tais revelações não poderiam rolar numa situação prosaica. Meu tipo de garota toma a estrutura de um clássico literário, Decamerão, de Boccaccio. Em meio a uma situação adversa, os personagens não têm outra coisa a fazer além de relatarem histórias para, assim, sobreviverem ao infortúnio do presente. O descarrilamento de um trem obriga quatro passageiros a dividirem os esforços de uma intimidade durante a noite numa desconfortável sala de espera de estação ferroviária. “Quatro indivíduos muito diferentes, vindos de diferentes nichos da sociedade”, avisa o narrador.
Temos um escritor, um burocrata, um médico e um empresário. Vale ressaltar a técnica apurada do autor para apresentar seus personagens, que nos são introduzidos como se Bose colocasse um facho de luz na cara de cada um deles, dispensando seus nomes. Faz sentido: naquela estação, eles são todos nós, só que sem a proteção dos nossos ônibus em miniatura.
Mas por que os quatro decidem relatar, justamente, lendas pessoais sobre o amor? “Não existe ninguém que nunca tenha gostado de alguém. O que aconteceu depois não importa; o que importa é o gostar. Talvez seja a memória também o que importa. Alguma lembrança...”, nos explica um dos personagens. Está certíssimo. Lembranças são bagagens que levamos juntos para o futuro, muitas vezes com certo sobrepeso, que precisamos “esquecer” em algum lugar, alguma estação de trem mal-iluminada, para continuar seguindo em frente na viagem.
Romance
Meu tipo de garota
Autor - Buddhadeva Bose
Editora - Companhia das Letras
Preço - R$ 33
Páginas – 152
A hora certa para se falar daquela lembrança incerta
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- Categoria: Resenhas