Foto: Daniela Vieira dos Santos/ Divulgação
Após finalizar a leitura de A parte maldita brasileira: literatura, excesso, erotismo (Tinta-da-China, 2023), de Eliane Robert Moraes, excelente livro de crítica literária, um dos melhores que se publicam entre nós em anos recentes, me coloquei a seguinte questão: até que ponto a literatura brasileira tolera o excesso? Por “literatura brasileira”, o leitor e a leitora podem pensar em dois significados. Primeiro, a produção de textos por nossos autores e autoras, seja em gêneros literários tradicionais como o conto, o romance, o poema e o teatro, por exemplo, ou em formas mais experimentais. Um segundo significado seria tomar “literatura brasileira” como sinônimo do sistema de construção de discursos a respeito da nossa literatura. Tal sistema comporta a crítica e a historiografia literárias, produzidas tanto dentro da universidade, quanto fora dela.
Gostaria de iniciar o debate sobre A parte maldita brasileira: literatura, excesso, erotismo pelo segundo significado. No início do seu livro, a autora afirma: “o que o volume enseja é o vislumbre de alguns estilhaços que parecem escapar à linearidade narrativa histórica nacional”. Extravagância, sexo, violência, sujeira, fluidos, palavrões, excessos, desequilíbrios, sexualidades não convencionais – tudo isso com frequência entrou em conflito com uma crítica literária, e com parte do público-leitor em geral, marcada pela ideia do que chamarei aqui de decoro.
Em seu fundamental ensaio Desejo e ideologia no final do século XIX, a escritora e crítica literária argentina Sylvia Molloy chama atenção para o fato de que a produção latino-americana, ao longo do século XIX, teve sua potencialidade transgressora submetida a um forte controle ideológico. Tal controle, formado por um misto de nacionalismo, positivismo e moralismo religioso, instituiu, no plano da expressão literária e no plano da expressão crítica, rígidas normas de decoro. Ou seja: de maneira tácita, ou explícita, foi controlado o que era cabível existir, ou não, no palco da representação literária. Dentro deste contexto latino-americano, o Brasil não será diferente. Olhar para o século XIX é fundamental, porque é o momento no qual nossas literaturas latino-americanas tomam sua forma mais sistemática. Molloy, bem como o livro de Robert Moraes, nos põe a pensar o quanto existiu de caretice nas pedras fundamentais de uma ideia de função social da literatura ainda muito forte entre nós, em pleno século XXI.
Se pudéssemos articular Georges Bataille – a grande referência teórica do livro, de quem a autora retira a noção de “parte maldita” –, Sylvia Molloy e a própria Eliane Robert Moraes, especulo o quanto certo olhar, até ontem bastante influente, sobre nossa literatura teve medo da “dilapidação” (a palavra é, outra vez, de Bataille) que as explorações da sexualidade e do excesso poderiam causar na própria produção literária. E o que, segundo este olhar conservador sobre os textos da nossa cultura, está em estado de desperdício? O “bom gosto”, sem dúvidas, mas em especial a necessidade de construir a imagem da nossa nação. Como falar do Brasil em meio à putaria, em meio ao delírio, em meio à vertigem da nossa paixão-horror pela carne e pelos seus vestígios físicos? Altos voos imaginativos, deliciosas orgias ou profundas especulações filosóficas, tudo isso parece querer nos afastar da fronteira do que supostamente cabe à nossa literatura – a fronteira do bom-tom, da decência, do compromisso com as boas intenções. O excesso nos faria desperdiçar a boa missão da literatura brasileira, portanto.
Desta forma, A parte maldita brasileira: literatura, excesso, erotismo procura chamar nossa atenção para a importância de pensarmos aquilo que dá título ao livro: “a parte maldita” enquanto excedente, sobra, excesso, lixo. Eliane Robert Moraes escreve sobre o maldito em autores canônicos como Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Mário de Andrade, por exemplo, bem como em autores contemporâneos como Hilda Hilst e Roberto Piva, entre outros relevantes nomes da atualidade. Temas como a prostituição, a pornografia, o erotismo, os nomes dos órgãos genitais femininos e a Aids fazem parte destes ensaios, que são escritos com rigor acadêmico e fluidez literária.
Da leitura dos ensaios, portanto, emerge uma visão renovada da literatura brasileira. A nós cabe a parte maldita. É salutar o excesso dos temas e da linguagem. Pelas lentes críticas de Eliane Robert de Moraes, Machado de Assis – sim, Machado, ele que tantas vezes foi chamado de um dos nossos mais pudicos autores – tem algo a dialogar com o maior de todos os malditos e pornógrafos, o Marquês de Sade. E como não nos fascinarmos pelo Mário de Andrade que surge diante de nós em um dos melhores estudos do livro, “O dito pelo não dito”? Neste texto, Eliane Robert Moraes pensa o tema do sexo na obra do modernista articulando considerações biográficas e análise de manuscritos, bem como a leitura de poemas, contos e da não ficção escritos pelo autor. O Mário de Andrade que surge do ensaio é a imagem de um homem em efervescência erótica, atormentado, porém, com o decoro exigido pelo mundo cultural de seu tempo.
Se falamos de erotismo e excessos, falamos, como muito bem aponta a escritora e professora Amara Moira na orelha do livro, da necessidade de “lidar com o caráter imaginativo da literatura em seus extremos mais gozosos e horripilantes”. Embora a imaginação não esteja entre as palavras-chave de A parte maldita brasileira: literatura, excesso, erotismo, ela é outra dimensão teórica fundamental para a conversa. O interdito à imaginação em todas as suas dimensões – do sexo à literatura fantástica – é um aspecto importante do debate. No caso específico do erotismo, Eliane Robert Moraes percebe que, no jogo do sexo e da dissipação, ocultar pode ser tão prazeroso quanto revelar. É dessa maneira que ela lê o sexo, tornado imoralmente moral, na obra de Nelson Rodrigues, por exemplo.
Ao longo dos seus ensaios, a professora da USP aponta a complexidade do nosso decoro, revelando que ele foi muitas vezes usado por nossos melhores autores e autoras como uma maneira de burlar a própria interdição. Ou seja: na literatura, o proibido é sempre o mais gostosinho – e quem cala, consente, mas também provoca. Logo, se falei de caretice como nossa pedra fundamental, agora mostro o outro lado da moeda: nossa literatura é transgressora desde sua fundação, porque precisou construir estratégias para burlar, ou melhor seria dizer, seduzir?, o interdito do nosso decoro.
Na leitura de Eliane Robert Moraes, portanto, a literatura brasileira nunca se furtou em lidar com a parte maldita da existência. É preciso, em especial no caso dos autores canônicos, saber ler nas entrelinhas. Logo, a “literatura brasileira”, no sentido do conjunto de obras poéticas que a compõem, não só tolera, como em especial reinventa os caminhos que nos dão a conhecer as experiências do excesso. Um divisor de águas é a literatura contemporânea, quando o obsceno se torna uma força poética assumida por inúmeras obras, tanto na prosa, quanto na poesia.
Se o habilidoso jogo das elipses continua – sussurros provocantes –, atualmente nossa literatura a alia à explicitação das sobras da parte maldita. Sobras essas que não são mais jogadas para baixo do tapete, ou trancadas dentro do armário da sala. Se um dos personagens de Hilda Hilst, citado por Eliane Robert Moraes, se pergunta “É metafísica ou putaria das grossas?”, A parte maldita brasileira: literatura.excesso.erotismo não hesita em responder: “Sim, a literatura brasileira é as duas coisas”.
Cristhiano Aguiar é escritor, professor e crítico literário. Autor do livro de contos Gótico nordestino (Alfaguara).