Quando duas solidões se encontram
Um cão no meio de caminho, por Valentine Herold
Aprendemos na escola que ao multiplicar dois negativos o resultado final é positivo. “Menos com menos dá mais.” Uma equação semanticamente estranha, mas estranhamente verdadeira. Na matemática da vida, esse cálculo também pode se revelar certeiro, como bem nos mostra Isabela Figueiredo no romance Um cão no meio do caminho, lançado recentemente pela Editora Todavia. Neste livro semifinalista do Prêmio Oceanos 2023 na categoria Prosa, a autora portuguesa se debruça sobre a solidão de dois vizinhos e como este encontro inusitado vai transformar as tantas ausências em novas presenças.
O narrador, José Viriato, é uma figura conhecida por todos na vizinhança onde mora há anos. Mas a popularidade aqui não é sinônimo de relações sólidas e profundas, muito pelo contrário. Se circula diariamente pelas ruas do bairro e arredores é para garimpar o ouro invisível aos olhos de muitos. José sai madrugada adentro para coletar objetos descartados nas ruas antes que eles sejam recolhidos pelos serviços oficiais de limpeza urbana e vive de forma minimalista com o pouco que arrecada da venda desses cacarecos consertados, tesouros esquecidos, memórias rejeitadas. Suas companhias são seus cães, por quem nutre o amor e todo o carinho que lhe foi negado na juventude.
Com 50 e poucos anos, ele é um outsider na vida frenética e cheia de obrigações que a maior parte da sociedade leva. Seu tempo é outro, sua forma de consumo é outra e suas ambições são, à primeira vista, inexistentes. Tudo isso é observado com curiosidade por Beatriz, uma mulher também de meia-idade que se mudou há pouco para a casa ao lado e que já ficou conhecida como “a matadora”. O apelido não é de todo em vão: revela um passado misterioso que José vai descobrir ao adentrar na casa entulhada de objetos, álbuns de fotografias e todo tipo de artefatos guardados ao longo das décadas.
Se em A gorda e Cadernos de memórias coloniais Isabela Figueiredo partiu de suas próprias vivências (no primeiro, para elaborar uma narrativa ficcional e, no segundo, diretamente na forma biográfica), Um cão no meio do caminho marca um novo momento na sua obra. Alguns temas permanecem, sendo costurados com a sensibilidade de sempre no seu projeto literário, como é o caso da relação de seus personagens com os objetos. No romance anterior, Maria Luísa tinha dificuldade de se desfazer do que ela mesma chama de “roupa de gorda” por enxergar na vestimenta uma representação do que viveu. Aqui as materialidades também têm significados que vão além de suas funções utilitárias e as subjetividades que perpassam o tanto de história e afeto que depositamos nelas são tratadas com profundidade.
“A beleza sobrevive a tudo. Um caco pode ter beleza. Tem serventia, garanto. Tem a sua história. Traz agarrado a si aquilo que tocou e serviu. Eu vejo a vida dos objetos. Não sei se as histórias de crianças nas quais os bonecos dialogam com os outros serão falsas. Mas os bonecos têm uma vida, tenho a certeza. Quero ter.”, desabafa José Viriato logo no início da narrativa. Tanto quanto os pedaços de objetos quebrados revelam o belo, Isabela nos mostra, sem pieguices e com muita força na sua delicadeza, que vidas despedaçadas e malcompreendidas também são belas e dignas de recomeços.
Infância exilada
Pequeno país, por Gianni Gianni
Em 2019, quando participou da Flip, o rapper e escritor francófono Gaël Faye lançava no Brasil o premiado livro Pequeno país, que saía pela jovem e precocemente encerrada editora Rádio Londres. Narrativa contemporânea fundamental para a reflexão sobre os conflitos que levaram ao genocídio de Ruanda, o romance volta a circular em nova edição da Carambaia, agora com tradução da poeta Marília Garcia e acompanhado de posfácio do autor Kalaf Epalanga. Se me arrisco a chamá-lo de fundamental – um adjetivo que pode soar gasto e esvaziado – é, sobretudo, pelo papel que a narrativa cumpre enquanto gesto de memória.
De uma perspectiva íntima, a irrupção da brutalidade da guerra no cenário da infância nos alcança como um escárnio inexplicável. A violência da infância roubada, sob o olhar de um narrador-criança, mescla doçura, nonsense, inocência e melancolia. Enquanto o Gaby menino se vê obrigado a acelerar sua maturidade, o Gaby mais velho, vivendo em uma França à qual não se sente pertencente, recolhe os cacos de tudo que foi perdido: “Ao seguir os rastros do meu passado, entendi que estava exilado da minha infância.”
Formas de ler a tragédia
O deserto e sua semente, por Luis E. Jordán
Vez ou outra, algo ocorre na vida de um artista que expande as possibilidades de interpretação da sua obra e ela passa a ir além daquilo que inicialmente se pensava que propunha. Na cultura pop dos anos 1990, o suicidio de Kurt Cobain, por exemplo, parece transmutar mesmo as músicas mais amenas do Nirvana em pequenos bilhetes suicidas, que permitem entrever o destino do vocalista em cada quebra de verso. Também na mesma década é lançado O deserto e sua semente, único romance do escritor argentino Jorge Baron Biza (1942-2001), que pode inicialmente ser pensado nessa lógica.
Em 1964, Jorge e seus pais estão num cartório, eles assinam o divórcio. Pouco antes da oficialização, o incidente: o pai se levanta e joga ácido sulfúrico no rosto da mãe. Daí em diante, o rosto desfigurado da mãe é uma marca no autor, e se une à outra, a da morte do pai, que, horas após a violência praticada, se mata com um tiro. E à outra ainda: 14 anos depois do ataque, ela, a mãe, também se suicida. Em 2001, Jorge Baron Biza se joga da janela, imitando a mãe. Dado o contexto trágico, o livro ganha certa gravidade. O deserto e sua semente é uma ficcionalização da experiência que o autor teve junto à mãe, durante sua recuperação da agressão. Até agora inédito no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Sérgio Molina, o romance é como uma busca por identidade.
O rosto desfigurado, perdido com o ataque, se torna daí um vazio,“que só mediante um esforço criativo do espectador deixava entrever a carne que o gerara”. Desse nada, há no livro um processo de reconstrução, não resumido à materialidade. Uma nova face precisa ser edificada para a mãe, sim; mas também para o filho, igualmente perdido, tendo que cuidar dela e de si, dos próprios problemas e vícios; e, acima de tudo, é preciso erguer uma linguagem e uma história tendo as próprias cicatrizes como tela em branco.
O rosto é uma metáfora fértil, e os processos de reconstituição são simultâneos: “Seu pai criou qualquer coisa de novo. Não podemos negá-lo: então só nos resta dar à tragédia sua própria natureza, seu caminho para se exprimir. Retirar as velhas ruínas para que o novo rosto se forme em liberdade, sem labirintos enganosos”, diz o cirurgião da mãe, de certa forma sintetizando o método do escritor.
Ainda em labirintos enganosos, dentre os espaços de interpretações válidas que se abrem com a morte — especialmente o suicídio — de um artista, há uma multitude de delírios quase conspiratórios que nublam o campo crítico. É algo a ser pensado para não se deixar cair em armadilhas. O deserto e sua semente é um texto fechado, escrito com bastante intenção, desde o tom filosófico; a paradoxal distância descritiva, quase fria, que o narrador toma da história; até a sucessão de acontecimentos narrados como um fio orgânico de memórias. É possível tomar as palavras e interligá-las com o futuro do autor, mas o que realmente importa no fim são as palavras que estão no papel. O isolamento acústico, com atenção apenas a nuances estéticas internas do texto, funciona em si. O interessante de ter dados biográficos não é cascavilhar o texto por bilhetes suicidas, é poder entender o autor como um personagem. Limitar o livro à biografia do seu autor seria um erro, mas levá-la em consideração pode intensificar a experiência com os símbolos que Jorge Baron Biza criou.
Poesia de uma vida
Poesia reunida de Donizete Galvão, por Valentine Herold
A passagem do tempo, os deslocamentos entre o campo e a cidade e o tanto de vida que acontece nos intervalos de cada acontecimento - sendo essas intermitências talvez a essência mesmo da vida - são marcas da poesia de Donizete Galvão. Nascido em Borda da Mata, sul de Minas Gerais, e tendo migrado para São Paulo com 24 anos, ele publicou em vida oito livros, entre Azul navalha (1988) e O homem inacabado (2010), antes de falecer em 2014, aos 59 anos. Todos, acrescidos de um título póstumo estão agora reunidos através da coleção Círculo de Poemas, parceria das editoras Fósforo e Luna Parque, no volume Poesia reunida.
Como bem pontua Viviana Bossi na orelha do livro, “perpassa a poesia de Donizete o sentimento de exílio na cidade, onde não se é mais que entulho para caçamba ou anônima boiada tangida pelas ruas.” As vivências rurais e urbanas do poeta ecoam objetivamente e subjetivamente em seus escritos através de uma sensibilidade única. Os sentimentos provocados pela leitura da poesia de Donizete Galvão talvez só possam ser traduzidos pelos seus próprios versos, sintetizados em Oração natural: “Fique atento/ ao ritmo,/ aos movimentos/ do peixe no anzol./ Fique atento/ às falas/ das pessoas/ que só dizem/ o necessário. (...) Fique atento/ às raízes/ que se trançam/ em seu coração./ A atenção: forma natural/ de oração.”
Clássico reeditado
O túnel, por Valentine Herold
O que um livro de estreia tem a dizer sobre seu autor? Tudo e nada - ou tudo ou nada. No caso de O túnel, primeiro romance do argentino Ernesto Sabato, o exagero existencial cabe perfeitamente na avaliação do leitor. Originalmente lançada em 1948, a obra acaba de ganhar uma reedição primorosa pela editora Carambaia com ilustrações assinadas por Oga Mendonça. De capa dura e formas psicodélicas, somos tragados pelo universo obsessivo e impulsivo do protagonista Juan Pablo Castel antes mesmo de iniciar a leitura. Descritos como um “romance policial às avessas”, a história se inicia com uma confissão direta e brutal. “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou María Iribane”.
Limitando sua história ao fato que determinou sua atual condição de vida (um preso), Juan Pablo reafirma o que iremos notar logo nas primeiras páginas: entre a paixão e o ódio a linha pode ser muito tênue e as questões sociais gigantescas. Saber o desfecho da história logo na primeira linha não arreface a curiosidade pelo desenrolar do encontro entre Juan e María - muito pelo contrário. A escrita hipnotizante de Sabato conduz a experiência pela existência humana com maestria ao longo de todo o romance.
Barô Barata
Por Carolina Botelho
A editora pernambucana independente Vacatussa estreia publicação em quadrinhos com a coletânea Barô Barata: até o princípio, do pernambucano Jarbas Domingos. Nesse volume de 92 páginas há um recorte das tiras publicadas entre 2013 e 2023, no jornal Diario de Pernambuco, na extinta revista Recreio, na revista Plaf e no perfil do Instagram do autor. O inseto mal-humorado e pessimista aparece também em histórias inéditas ambientadas na cidade subterrânea de Casca Grossa.
Jarbas aborda de forma leve, bem-humorada e direta questões cotidianas e sociais, como a rotina de trabalho, ao lado de amigos também insetos como Tapuru, o cupim Juninho, a abelha Mel e o prefeito com sugestivo nome de Larípio. O recorte histórico possibilita acompanhar e constatar mudanças no traço do quadrinista e no desenvolvimento das personalidades dos protagonistas. Mudanças essas também decorrentes das transformações pelas quais a imprensa passou nos últimos anos. A publicação traz prefácio do editor da Maurício de Sousa Produções, Sidney Gusman, e posfácio do editor da Vacatussa, Thiago Corrêa, trazendo curiosidades que contextualizam historicamente a trajetória da tirinha criada em 2005.