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Foto: Rachel Eliza Griffiths/ Divulgação

O mar é história.
Derek Walcott

Quais possibilidades de ruptura podem se abrir quando consideramos que os assassinatos de pessoas negras sancionados pelo Estado são parte constitutiva de nossas democracias? O que acontece quando, em lugar de exigirmos justiça a cada vez que uma pessoa negra é assassinada, reconhecemos que a própria noção de “justiça” é capaz de produzir a exclusão e a morte de pessoas negras como norma? Ou, como questiona Christina Sharpe, o que é alterado quando procedemos como se soubéssemos “que a antinegridade é o chão sobre o qual estamos de pé”? 

Em No vestígio: Negridade e existência, livro recém-publicado pela Ubu Editora, com tradução de Jess Oliveira, Christina Sharpe parte de suas memórias pessoais para narrar como o racismo atropelou as ambições e os desejos de sua família. Racismo, segundo ela, que move o “navio” dos projetos nacionais e imperiais do Estado. Escritora, pesquisadora e professora da Universidade de York, no Canadá, onde leciona sobre temas como literatura, cultura visual, história da escravidão e colonialismo, e também pesquisadora associada sênior no Centro de Estudos de Raça, Gênero e Classe na Universidade de Joanesburgo, Sharpe quer demonstrar como as maneiras de existir “no vestígio” entrelaçam as histórias de vida das pessoas negras. 

Incluir o que é pessoal foi, portanto, uma maneira de situar o trabalho, e a si própria, no vestígio. Para narrar histórias de mortes prematuras, assassinatos, precariedade e sujeição racial que se repetem constantemente ao seu redor – mesmo com o salto dado por ela ao alcançar o cargo de professora titular em uma universidade –, Sharpe elabora um quadro conceitual capaz de pensar a experiência negra na diáspora, nos “rescaldos ainda incandescentes da escravização de pessoas como bens móveis no Atlântico”. 

Ela nos conta, por exemplo, que antes do seu nascimento, o pai e a mãe se mudaram do oeste da Filadélfia para Wayne, na Pensilvânia (Estados Unidos), com seu irmão e irmã mais velhos. Uma família negra, de classe média baixa, em busca de melhores oportunidades, como tantas outras famílias. Não levaria muito tempo até perceberem que as coisas não eram tão diferentes na nova terra. Com a morte do pai, quando Christina tinha 10 anos, o dinheiro tornou-se escasso  e a família se viu arrastada para a pobreza. Entretanto, como afirma Sharpe, mesmo quando vivenciavam (e reconheciam) as experiências de sujeição à qual estavam submetidos, seus familiares não se viam como pessoas sujeitadas. Se há um argumento central no livro é justamente este: você pode ser forçado/a a viver subjugado/a por forças opressoras, mas isso não significa viver apenas como uma pessoa subjugada. 

“Vestígio: o rastro deixado na superfície da água por um navio; a perturbação causada por um corpo nadando ou sendo movido na água; as correntes de ar atrás de um corpo em voo; uma região de fluxo perturbado.”

A autora repete diversas vezes as múltiplas definições de wake (o título original do livro é In the wake) – entre elas: vestígio, vigília, velório, velar, vereda – para explorar as aterradoras experiências de violação e comodificação que moldam as vidas negras. A figura do tumbeiro é uma constante, assim como a “Passagem do Meio”, parte do trajeto triangular do comércio de escravizados que envolvia Europa, África e América. Chocam, especialmente, as aproximações entre as descrições brutais das travessias transatlânticas da escravização e os relatos atuais sobre as travessias e os afogamentos de africanos/as no Mar Mediterrâneo. Quando chegam à costa, muitos desses/as refugiados/as são confinados em centros de detenção que atualizam o porão dos tumbeiros. Na matemática da vida negra, os cálculos da desumanização e da matabilidade estão sempre presentes.

Para demonstrar como a Passagem do Meio e suas consequências assombram a vida  contemporânea, Sharpe divide o livro em quatro capítulos, nomeando-os com categorias que ela teoriza como localizações contínuas da existência negra: o vestígio, o navio, o porão e o tempo. De forma magistral, seu livro deixa evidente que a semiótica do navio tumbeiro continua a atuar na vida cotidiana, na forma de prisões, campos de trabalho forçado, hospitais ou escolas. “No vestígio, o passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente.” Publicado em 2016 nos Estados Unidos, em meio à ascensão do nacionalismo branco, No vestígio tem sido referenciado como uma obra que revoluciona o pensamento negro. No próximo ano, a Editora Fósforo publicará mais um título da autora no Brasil: Ordinary notes. 

Em suas obras, Sharpe nos convoca a uma indisciplina epistêmica, uma vez que adentrar e sair dos arquivos da escravização demanda novos modos e métodos de pesquisa, ou, em suas palavras, modos e métodos de “pensar e imaginar outramente”. Assim como propõe Saidiya Hartman em seu influente artigo Vênus em dois atos, Sharpe quer “escutar o não dito, traduzir palavras mal- interpretadas e remodelar vidas desfiguradas”, produzindo contranarrativas.

Ela se junta ao trabalho de artistas e intelectuais que estão questionando a representação das vidas negras. Entretanto, como argumenta, seu “projeto olha para os desastres cotidianos atuais no intuito de perguntar o que, se é que algo, sobrevive a essa persistente exclusão”. Ao voltar-se para a literatura, a performance e a cultura visual para entender como estas abordam essa (não) sobrevivência, Sharpe não está interessada em explicações que tentam resolver a questão da exclusão, mas, sim, em obras que elaboram esteticamente “os paradoxos da negridade”. Tal empreitada busca mapear não só como as formas de violência da escravização emergem  no mundo contemporâneo, mas rastreia, sobretudo, os momentos de crítica e recusa. Ou, em outras palavras, os modos negros de resistência.

Não à toa, Sharpe sugere que a vida negra que insiste na existência – apesar da morte – pode ser comparada ao ato de vigília (wake). Em suas páginas, o trabalho de vigília emerge como uma tradição negra de cuidado e emaranhamento; como teoria e práxis da vida na diáspora. Vigília pensada em alusão aos processos rituais por meios dos quais encena-se o luto e a memória. Mas vigília também como condição daquele/a que está desperto/a, acordado/a, em vigilância. O que está em jogo, para Sharpe, é o não reconhecimento da antinegridade como clima total. 

Viver no vestígio é conviver com a morte passada e presente. Mas é também uma forma de reconstituir o que foi destinado à obliteração, de reimaginar um mundo no qual a sobrevida da escravidão tenha terminado e a vida negra não permaneça em perigo. “Há desastre e possibilidade”, escreve a autora. Por meio das práticas de “anotação” e “revisão” negras, ela quer elaborar novos modos de escrita que levem a ver e ler outramente, novos modos de tornar sensível e de se contrapor à força do Estado. No vestígio não deixa de ser um relato de múltiplas assombrações, mas, antes de tudo, é uma oferta de generosidade e comprometimento que anima o desejo por um futuro de liberdade. Christina Sharpe sabe que ela não pode conter as formas de violência autorizadas no presente, mas pode, apesar das circunstâncias de destruição permanente, perturbar os ventos da história.

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