Aos 75 anos, o escritor sertanejo Raimundo Carrero vê retornar mais um conjunto de novelas e romances que ajudaram a construir a estrutura literária que o faz um dos mais importantes autores de sua geração. Enfeixados sob o título de Ceifa sangrenta em campo de batalha, o conjunto recém-publicado pela Editora Oia reúne obras escritas em momentos distintos de sua trajetória, mas que fazem a ponte entre a temática sertaneja da fase inicial e a fase mais urbana, que vai definir sua maturidade: A dupla face do baralho – Memórias do comissário Félix Gurgel (1984), Viagem ao ventre da baleia (1986), Os extremos do arco-íris e Sinfonia para vagabundos (ambas de 1992) em comum trazem o homem em conflito consigo mesmo e com a sociedade, de existências dilaceradas muitas vezes pela incompreensão e a culpa, entre a fé e o pecado, a lucidez e a loucura.
Vestido de branco em sua cadeira de balanço, o comissário Félix Gurgel confessa a si mesmo, revelando-se ao leitor: imaginava eterno o poder de uma vida arbitrária e, por vezes, cruel, que tem o prazer na humilhação dos outros, até dar entrada nos papéis da aposentadoria e vê o chão lhe faltar. Sabe que a morte está por vir; que sua culpa não tem expiação e o menino maluco Camilo olhará para ele pelos olhos dos pássaros. A dupla face do baralho – Memórias do comissário Félix Gurgel faz parte da trilogia ambientada em Santo Antônio do Salgueiro e, aqui, Carrero vai se distanciando da estética armorial – sem renegá-la – em busca de um caminho literário próprio, bordado em seus pensamentos.
Viagem ao ventre da baleia é um romance de transição no universo do autor. O sertão de Santo Antônio do Salgueiro ainda é o território onde se desenvolve a parte crucial da história, mas o Recife urbano – dos anos de luta contra a ditadura militar – ganha relevo pela primeira vez em sua obra, e Carrero toma sua posição firme contra toda forma de tirania e opressão, numa perspectiva de um cristianismo engajado nas lutas sociais e questionadora de alguns aspectos da religiosidade mística e, quando não, reacionária.
Raimundo Carrero se ressente da pouca atenção que Viagem ao ventre da baleia recebeu ao longo dessas quase quatro décadas e por isso vale a pena nos reter um pouco mais nesta obra. Os conflitos que dilaceram a sua alma estão fortemente presentes ao longo do romance, notadamente expressos nos personagens do padre Paulo, amigo de Miguel e Jonas, que com ele enfrentou a ditadura que se impôs no Brasil com o Golpe de 1964 e sofreu nos porões da perseguição política no Recife. Num país em que a Igreja Católica teve uma participação bastante efetiva, após o Concílio do Vaticano II e a opção preferencial pelos pobres, com D. Helder Camara exercendo forte influência no Brasil, e que, ao mesmo tempo, a questão agrária continuava sendo um impasse (perdurando até os dias atuais), a questão da fé cristã se impõe no centro das inquietações de Carrero para enfrentar a violência, a subjugação e a mesquinhez dos grandes proprietários de terra, no caso da história, do sertão de onde veio o autor.
Padre Paulo é um pastor que luta pela justiça social, mas busca um caminho que segue os ensinamentos de Cristo, insuficientes, no entender de Jonas, para vencer o conflito contra o coronel Salvador Barros, que espoliou as terras de Jacinã, deixando o povo na miséria. A luta pela terra pela via do conflito armado é alimentada como a solução mais rápida para libertar um povo escravizado, mas traz consigo também a semente da vingança pessoal, uma vez que o coronel mandara assassinar seu pai.
Se, do ponto de vista histórico, as condições sócio-políticas do Brasil diferem do momento em que o romance foi escrito e que ecoava a luta travada nos anos 1960-1970, a questão do direito à terra não está pacificada, mesmo com o Supremo Tribunal Federal tendo derrubado o Marco Temporal para áreas dos povos originários, que o Congresso, agora via Senado da República, tenta fazer vingar, e com os movimentos sociais ainda reivindicando a reforma agrária que nunca se efetiva em sua amplitude, enquanto o agronegócio avança suas fronteiras pelos quatro cantos do país.
A impotência de padre Paulo em conduzir o seu rebanho cristão é costurada como um bordado da leitura da Bíblia feita por um fiel leitor que questiona os conflitos que a própria leitura das Escrituras impõe, pois é a justiça e a piedade com a alma daqueles que sofrem os desígnios de Deus – aos quais ele não se conforma e se rebela – que movem a sua escrita e que estanca diante de uma Igreja ainda presa em seu próprio misticismo e dogmas.
Uma das cenas mais fortes de Viagem ao ventre da baleia é construída por Carrero conduzindo o pobre do sacristão Augusto pela Igreja levando um Cristo crucificado com os pés amarrados por cobras. Carrero expõe seu personagem ao sacrifício e à blasfêmia para reafirmar a força da fé, para enfrentar as maldições que sofrem o homem sobre a Terra. A Miguel caberia tentar conciliar os conflitos entre o padre e Jonas, de quem recita um belo poema de feitura armorial – Soneto apocalíptico, levando a refletir sobre os objetivos do amigo desde os tempos em que discutiam questões políticas e religiosas no apartamento (aparelho de guerrilha?) no Recife.
“Já naqueles tempos Jonas não acreditava que o amor fosse suficiente para derrotar a injustiça, a prepotência e a tirania? Discutiam horas seguidas, a noite vencida. Planejavam a luta revolucionária apenas através da Igreja. Mas estava mentindo. Sempre mentiu. E, se não fosse assim, não teria acreditado na força das armas e a ela recorrido”, lamenta-se um desapontado Miguel.
Lido nos dias atuais, o discurso do tenente sobre “os monstros vermelhos” que “quiseram tomar conta da Pátria”, feito para intimidar Miguel é de uma atualidade repugnante, mas graças à força do voto popular e da resistência das instituições da República, que resistiram à intentona fracassada de 8 de janeiro, vão se tornando, mais uma vez, página virada da história. Viagem ao ventre da baleia é um dos poucos romances de um autor pernambucano a retratar personagens que militaram na luta revolucionária contra a ditadura. Como homem de esquerda e jornalista militante, Carrero viu muitos conhecidos serem perseguidos pelo regime fardado. Militância que leva o autor a trazer para o leitor as lutas libertárias de Pernambuco como pano de fundo para o debate ideológico entre Jonas e Miguel.
Um personagem importantíssimo na trama é Salvador Badalo, contra quem todos querem a seu modo confrontar – seja pela violência, pelo diálogo ou pela força da Lei, mediada pela Comissão de Justiça e Paz. Por ser um personagem arquetípico que representa o poder autoritário patriarcal, escravocrata e grileiro de terra, Carrero o expõe a situações vexatórias e caricaturais, senhor de uma guerra que para ele vai ocorrer a qualquer tempo. Ele tem que triunfar a qualquer preço, nem que seja passando o trator por cima de tudo e de toda essa gente “preguiçosa, incompetente e rebelde”. Este é um de seus romances com maior galeria de personagens. Com um narrador onisciente, mas que se aproxima dos personagens ou lhes dá autonomia, Viagem ao ventre da baleia se abre a uma mistura e polifonia de vozes, distanciando-se de suas primeiras obras reunidas no conjunto de novelas O delicado abismo da loucura (Iluminuras, 2005).
Alguns aspectos formais de sua escrita, como o encadeamento, ou melhor, o desdobramento, associação e pulsão, por semelhança ou pelo contraste, mas que se assomam, e as frases intercaladas de efeito, para realce de uma ideia ou cena, pontuam a narrativa, criando modulações e tensões na leitura.
Carrero recorre também a vários recursos narrativos que fragmentam a história, apropriando-se das anotações, os pensamentos, citações bíblicas e poemas de Miguel, de carta de Jonas, sermão do padre Paulo e das confissões de Salvador Badalo, mostrando um arsenal variado de técnicas que foi aprimorando em suas próximas obras.
Escrito entre o Recife e Iowa (de onde foi bolsista), Sinfonia para vagabundos é um dos romances mais experimentais de Carrero, que iria radicalizar sua escrita em Ao redor do escorpião... uma tarântula (2003), não incluído no box. É também uma das mais urbanas e reveladoras de um Recife que ele conheceu como jornalista, músico e boêmio. Não à toa, o personagem central é o saxofonista (como ele) Natalício. Carrero impõe um registro pós-moderno (termo em voga na época) à escrita, repleta de metáforas da condição humana. As citações e referências musicais e literárias, principalmente, são samplers com os quais vai construindo a sua sinfonia jazzística, cheia de improvisos. Improvisos aqui não são frases fortuitas, as citações não são pedantismo ou erudição. São modulações, diapasões, variações, construções em torno de um tema de quem tem o domínio do instrumento – a escrita – e busca expandi-lo em busca de novos horizontes – literários – para provocar/cativar a sensibilidade do leitor.
Os personagens dessa sinfonia são perdedores – losers –, que levam a vida no pecado e na culpa, mas que se recusam a não viver intensamente suas paixões e danações – temas recorrentes na escrita carreriana. Personagens que vivem o lado sujo da cidade do Recife decadente das últimas décadas do século XX, com seus deserdados sociais e o vazio da existência. Quem frequentou a noite da zona portuária do Bairro do Recife, com suas boates e prostíbulos – e Carrero foi uma dessas pessoas – sabe de que matéria esse romance tão visceral e dolorido foi composto e que deu vida a personagens como o professor Deusdete e Virgínia nessa jornada do dia dentro da noite, como ele próprio se refere no prólogo esclarecedor .
Se Sinfonia para vagabundos é uma obra-colagem experimental em tom jazzístico noturno, Os extremos do arco-íris poderia ser considerado um divertimento, uma obra ligeira, com um tom mais casual, ligeiro e sem tantas amarras, mas neste caso dotado de um humor mais delirante. Segundo o próprio Carrero, a novela policialesca foi escrita sob encomenda para as edições Bagaço visando um público infantojuvenil, portanto, ainda por descobrir a literatura – um atraso infelizmente persistente na educação brasileira.
Deve vir desses fatores o desejo de Carrero de homenagear autores pernambucanos de sua predileção, muitos de sua geração, citados ao longo do livro. E não apenas nomes como João Cabral de Melo Neto, Alberto da Cunha Melo, Everaldo Moreira Veras, Hermilo Borba Filho, entre outros. Manuel Bandeira dá nome a um personagem. Ariano Suassuna é outro que está presente na trama, assim como João Câmara e o psicanalista George Lederman.
Uma notícia de jornal serve de mote para Carrero escrever uma trama em torno de uma morte no telhado do Hospital Psiquiátrico da Tamarineira, misturando novela noir americana com filme B, criando títulos e nomes de atores e diretores absurdos. Ao mesmo tempo em que retrata um Recife – mais uma vez decadente, com o abandono do centro e um protagonista com pretensões intelectuais ou artísticas (é o que se deduz) que não consegue viver do seu talento –, Carrero também reflete sobre a loucura e o tratamento manicomial, arriscando-se mais uma vez em sua escrita ainda fragmentária, que vai deixando pistas (falsas) por onde passe e que, num breve futuro se consolidará em toda sua maturidade.