tratada Alia Trabucco Zerán crédito Lorena Palavecino 4

É mais fácil imaginar uma mulher morta do que uma mulher que mata”, aponta a escritora chilena Alia Trabucco Zerán ainda no prólogo de seu mais recente livro, As homicidas, lançado no Brasil pela Fósforo Editora. Em suas páginas, a autora permite ao leitor que a acompanhe durante um estudo profundo em quatro casos de mulheres condenadas por homicídio durante o século XX no Chile. Através de uma análise factual que perpassa sua visão da sociedade e princípios feministas, Alia revela o machismo de seu país, seu continente, seu mundo. “Mulheres e assassinas eram verdadeiros antônimos, palavras que juntas eram inaudíveis, inimagináveis, a ponto de provocar desde uma curiosa surdez até as fantasias mais aterrorizantes: a aparição de bruxas, medeias, vampiras, femmes fatales”, escreve em um trecho do livro.

Grande vencedor do British Academy Booker Prize no ano de 2022, As homicidas tem sua narrativa desenvolvida através do formato ensaístico e se divide em quatro grandes e detalhados capítulos, cada um deles dedicado à investigação de uma mulher assassina, além do prólogo e do epílogo. O que a levou a cometer o crime pelo qual foi condenada? Quem era? Como era sua vida? Que tipo de recepção midiática o caso recebeu? Como se deu o julgamento? Todas essas perguntas aparentam ser ponto de partida para a escrita de Trabucco, que costura documentos oficiais, relatos pessoais de sua experiência na busca por detalhes e arquivos do caso em textos reflexivos que questionam a sociedade do século passado e as permanências econômicas, sociais e culturais que seguem na moral da população de hoje.

Partindo destes questionamentos, a escritora cria uma narrativa onde as morais e os costumes de gênero são desafiados. Em entrevista para o portal de resenhas literárias britânico LSE Review of Books, Alia afirma que nós, como sociedade, “Normalizamos a violência contra a mulher ao ponto de que imagens que vitimizam mulheres estão automaticamente disponíveis para nós. Nós não levantamos uma sobrancelha se virmos um homem armado, mas uma mulher armada? Uma assassina? É impensável. É importante deixar claro que eu não estou sugerindo que deveriam existir mais mulheres assassinas. Estou apenas jogando luz em um tópico muito tabu que nos permite examinar o que consideramos normal e anormal (e porque), e como reagimos a isso”.

É com esperteza em suas análises que os casos de Corina Rojas, Rosa Faúndez, María Carolina Geel e María Teresa Alfaro são retratados, convidando o leitor a olhar os antigos crimes com lentes diferentes das habituais. Cada uma das histórias se diferencia desde seu princípio, afinal, a protagonista de cada um dos capítulos é uma mulher diferente, com ambições, dores e amores diferentes. Isso por si só aparenta ter sido um fato difícil de ser constatado nos registros da época, onde toda mulher parecia ser vista como inferior ao homem em absolutamente todas as suas complexidades e habilidades, incluindo a de matar. Desafiando esse predefinido senso de como uma mulher deveria se portar, as quatro mulheres que guiam o ensaio da escritora chilena chocaram o país por muito mais do que os crimes que cometeram, chocaram o país pelo o que isso significava.

Sobre esse significado, Alia se demora por toda a obra, se derramando nas linhas e trilhando um caminho que leve seu leitor ao destino final. Mulheres podem, sim, ser donas de casa, recatadas, doces, amáveis, gentis, mães carinhosas, esposas atenciosas, mulheres afáveis e conformadas. Essas características, porém, são adjetivos qualitativos que podem ser utilizados para descrever uma pessoa no singular, e não um gênero inteiro.

Assim como o feminismo se atualiza e passa por mutações com o passar do tempo e com contribuições de novas estudiosas e movimentos, o conceito por trás do feminino também é mutável. Se no século XX as mulheres deveriam ocupar um papel social de damas indefesas e devotas ao marido, as assassinas históricas do livro de Trabucco não se encaixam neste papel e, como resultado, seus crimes ganharam uma repercussão muito mais midiática e alvoroçada, com diversas pessoas tentando entender como uma mulher poderia cometer um homicídio.

Quantas notícias de homens que matam suas esposas ou amantes, pelas mais diversas razões, saem no jornal todos os dias, desde que Gutenberg criou sua prensa revolucionária para o jornalismo? A resposta pode ser incerta, mas com certeza se apresenta elevada. A sociedade vive em um mundo onde o homem pode ser um monstro e matar por matar — ou, pelo contrário, ser apenas um eterno moleque que matou por impulso. Às mulheres não são dadas as mesmas defesas perante a corte.

Quando o crime de Corina Rojas foi a público, os jornais e a população questionavam o seu envolvimento com bruxaria e o seu comportamento sexual se tornou um ponto chave para a justiça. No capítulo Um morto para o coração, dedicado à história do crime cometido por Rojas, Alia explica: “O juiz atribui à infidelidade de Corina um papel conclusivo. A viúva só aparece como suspeita no assassinato quando sua reputação como mulher e esposa é questionada. A relação adúltera determinou sua conduta homicida, parece dizer o magistrado, e constitui um crime anterior, que deve ser ponderado no julgamento”.

Logo após o trecho indicado, ela reitera que, até o ano de 1994, no Chile, uma mulher adúltera poderia ser condenada a cinco anos de prisão. Ao homem, todas as regras eram distintas, inclusive o tempo da sentença, que caia para cerca de 500 dias.

A construção de Alia Trabucco Zerán em As homicidas é atual mas ainda ignorada por muitos. Em suas páginas, a escritora guia o leitor por um período da história mundial que já passou, mas ainda está aqui. O patriarcado ainda reina e reúne seguidores que creem na incapacidade da mulher de ser excelente, ou de matar.