marly de oliveira Acervo Pessoal

Um feixe de rúculas, de Marly de Oliveira, é um delicado e elegante volume de poesia. Organizado com capricho por Cecilia Scharlach, inclui um testemunho de Nélida Piñon e um ensaio de Alberto da Costa e Silva (Editora Unesp, 135 páginas).

Bastariam já esses nomes que emolduram e justificam um livro para assegurar o apuro de pensamento e de estética. Mas há ainda Giuseppe Ungaretti, que cita a profundidade e a graça da poetisa. Para sublinhar os poemas escritos por Marly de Oliveira na língua italiana – em versão bilíngue em Um feixe de rúculas. Um deles é Memória:

Murmúrio de pássaros/ em fuga/ sobre seu rosto./ Dias cheios/ de amor,/ e nossa sombra/ jungida/ interminavelmente/ ao movimento/ das estações/ Seu respiro/ frágil/ passando/ o pórtico/ da verdade,/ intimidade que desvela/ todo mistério e torna/ menos dura a espera/ e me distende/ quando já não creio/ e desespero.// De tudo isso/ me restou/ esta velha clepsidra imperturbável/ que desliza o tempo toda lembrança/ e a faz mais próxima,/ você lampejo,/ você deserta,/ você desfeita.”

É fácil dar-se conta, memo um leigo leitor, no que consiste a energia poderosa dessa poesia. Bastar lê-la, simplesmente lê-la, sem teorias nem conhecimentos prévios. Da força do ritmo e das imagens compostas com método e desvelo (eis uma palavra bonita em desuso). No sentido e no gesto, e ambos tecem esse feixe de versos.

Há uma geração de poetas que floresceu nos anos 1950 no Brasil e, superados já os extremos de 22 e a reação de 45, puderam fazer uma arte livre já dos excessos. Se não há uma medida certa para a poesia, que nunca será uma criança, jovem, adulta ou velha ‘certinha’, porque nunca pode ser restringida a idades, a do ritmo é a melhor delas. Poetas realmente poderosos não dependem da rima para nada, e até prescindem dela nos seus melhores textos. O ritmo, porém, mesmo quando ‘dissoluto’ é seu compasso e seu esquadro.

Quem prestar atenção aos títulos dos livros de Marly de Oliveira vai notar uma constância: a da natureza, seus ritmos, seus seres. Seja no Cerco da Primavera, com que estreia em 1957, a Explicação de Narciso, A Suave Pantera, A Vida Natural, O Sangue na Veia, O Deserto Jardim, O Mar de Permeio. Agora este novo livro, tão bem-vindo depois de tanto tempo sem ouvir-se a ‘voz’ de Marly, acrescenta ao seu repertório mais um símbolo natural: a rúcula.

Qual o sentido de todo esse conjunto e suas, ora sutis, ora explícitas conexões com a mitologia, a cultura clássica, greco-romana e italiana? Fecundidade, fertilidade são palavras que vêm, de imediato, à mente. Subjacente, o animal – inclusive o animal humano, daí as tantas homenagens a “gente viva”, para usar-se uma expressão que dá título a um livro de Câmara Cascudo.

Essa gente viva integra com seus nomes e sobrenomes a primeira parte do livro. Em Um itinerário para o Porto. Começa com os bonitos, porque tão bem ritmados e metrificados, versos: “Vindo de vários caminhos,/ muita festa e alguns naufrágios,/ assim cheguei ao Porto. De ordinário/ a visão de algum castelo,/ das abadias, das praças,/ do rio Douro, tão perto/ que línguas do mar lambiam/ seu peito aberto, tudo/ formava um só monumento,/ batido por forte vento/ e compensava o deserto”.

Como Antonio Machado, Marly de Oliveira, andou por muitos caminhos e abriu muitas veredas. Tudo convergindo para um só, o da Poesia, uma forma de vida perene porque a partir da Palavra até a ausência se re-apresenta, seja no que se representa, seja o que presentifica. Daí que “falar do Porto” é mais do que uma fala, “é como se o tivesse vendo,/ não relembrasse/ o que então parecia pouco:/ a cidade e seu nevoeiro,/ a minha casa e o centro dela”.

No seu itinerário, a poetisa não só reconstrói o espaço da cidade, os seus habitantes mais queridos, como Agustina, Arnaldo Saraiva, Graça, Moura, Laura, Nina.

Esse feixe de versos é, “literalmente e em todos os sentidos” um livro de amor. Tão apolíneo quanto dionisíaco, daí a escolha da rúcula.

Na erudita edição dos versos dos poemas antigos chamados de priápicos, preparada pelos professores Carmen Codoñer e Juan Antonio González Iglesias, ambos da Universidade de Salamanca, aprendemos que a rúcula era considera um afrodisíaco no mundo antigo. No trecho do poema lê-se: “pois, por mais preparado que pareça,/ dez feixes de rúcula fazem falta. “Algo assim como se dissesse ‘dez viagras’, explica-se numa nota.

O componente amoroso e vital está associado, obviamente, a algo que intrapassa e ultrapassa o sexual, o sensual, porque é, antes de tudo, sensorial. Assim é a poesia de Marly de Oliveira atiçando os sentidos. Afirmação da perenidade e consciência da efemeridade. A mão, o punhado ou o feixe de rúculas não será, por isso mesmo, tão diferente daquilo re-ferido por Castro Alves, no prólogo das suas Espumas flutuantes. Espumas que estão, como se sabe, literalmente ligadas ao nome de Afrodite:

“Uma esteira de espumas... — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas flutuantes no dorso fero da vida!...”