resenha Mascaro

A vida mudou. Os espaços estão sobrepostos e o tempo também mudou. O ontem mudou. Há anos, não somos mais os mesmos. Caminhamos para uma mudança profunda na experiência do adoecer.

A clínica atual está bem ocupada com as patologias da memória. Claro, há as causas orgânicas, da ordem do traumático, da informação, dos estímulos sensoriais. Ainda é cedo para conclusões, mas já estamos doentes de um adoecimento que se reflete no excesso de intensidades, os traumas cumulativos e o esvaziamento da memória.

O horror. Estudos recentes apontam para números distópicos: cerca de 50 milhões de pessoas no mundo sofrem com doenças desse tipo. O horror. Em 30 anos, o número triplicará, dizem os especialistas. O horror. Outros milhões vivem, sem saber, na realidade infernal da perda de cognição e memória.

Esse horror do esquecimento está presente no novo romance de Sidney Rocha, O inferno das repetições (Iluminuras). Paradoxalmente, este é também um romance sobre a lucidez. “Tenho apenas meia consciência”, diz Omar, o personagem-narrador, em uma das definições mais duras dos atestados existenciais dessas criaturas – sobretudo ele, Omar, atormentado pelo malévolo deus das repetições. São castigos. Traumas inibidos. Silenciados. São cortes. Não ao modo dos diretores de cinema, mas dos anatomistas.

A quem Omar dirige sua narrativa? Com quem busca o diálogo que é, ao mesmo tempo, ruptura? Busca seu self verdadeiro? Essas perguntas de supervisão não servem para nada. Uma psicanalista precisará de mais sentidos para entender esse momento no qual a memória de Omar não comparece mais para o jantar. Se estamos diante do abismo, como apontam os especialistas, esse doente está parado diante de todos os falimentos, onde faliram as palavras, a língua, a linguagem: em um universo onde tudo cai sem parar: “A temperatura cai aos poucados. Ou terá sido meu humor, minha esperança, meu corpo, o copo na cozinha?”

Não é somente o que ocorre com o desgraçado Omar, mas também com o leitor. Ele o amará e o detestará, embora se identifique com ele imediatamente, ainda mais se as estatísticas estiverem certas.

As histórias se passam como se todos vivessem em castelos vazios, a vida-vidinha de seus personagens, sob a crista do aqui-agora, da vida consumida pela superfície, na trágica certeza de todo destino se cumprir, como diz Violeta, a esposa de Omar.

Nesse inferno, tudo se mistura: elementos sensoriais; cores deslumbrantes; o erotismo – se a palavra ainda se remete ao amor em alguma parte na cabeça do narrador. Aliás, as palavras não importam, posso anotar na ficha do paciente. O elemento sensorial conduz o leitor para uma comunicação sem palavras, o grunhido, primal, terrível. Estamos diante dessa falência logo na primeira página. Ali, enquanto olha o brinquedo do neto, Natan, Omar mostra a chave da constituição dos primeiros traços da memória da criança, quando a percepção agarra a realidade, na experiência afetiva com o outro. Falido, o protagonista partilha a emoção pelo caminho possível, o de se comunicar sem palavras com a criança. Este episódio oferece a delicadeza (ou o engano) de abrir uma luz no meio da sala, do caos. Mas estamos perdidos em análises. O tempo inteiro.

Há ainda, sobremaneira, nesse romance de Rocha, o horror e terror sociais de várias gerações de silêncios na América Latina, em um universo que o autor cria a partir da linguagem. Tudo é duro demais. “Todos escondemos algo. E queremos, precisamos esquecer. O crime. O perigo”. Uma poesia a palo seco, de gerações que não falam porque não se lembram. Ou o contrário. De todo modo, eles venceram e perdemos nós.

A partir de uma memória coletiva, O inferno das repetições decanta as percepções afetivas para recriarmos, à conveniência dos poderosos, o momento vivido. Não conhecemos purgatórios.

Voltemos ao atlas médico: a memória é dinâmica, ela vai se constituindo ao longo de nossa caminhada. No entanto, no adoecimento, perde-se a fluidez e o dinamismo, dando espaço às repetições. Esse processo poderia ser comparado a um rio que, durante a seca, perde sua densidade e só lhe resta a superfície exposta do seu leito. Os traços de memória mais primitivos são as marcas no leito desse Letes, de onde gritam personagens desse romance-rio.

O inferno das repetições traz à tona os fluxos de vida que não puderam seguir de forma criativa e o enigma que se desloca na sucessão das gerações, onde desfilam segredos do jabuti, da criança, do doente.

Um romance sobre a dúvida. A vida paupérrima e envergonhada de Violeta. A vida arenosa de Solange Monday. Essas, diferentemente de Melissa, que não possuía alma porque lhe bastava a beleza, buscam a elevação espiritual tão comum à classe média de todo lugar: a transcendência do consumo.

A vida incrível de Carlo Peixe, o mais fodido entre os fodidos, diz uma voz dentro do romance. A vida inútil do saltitante Steffano. A vida transitória, de zigue-zagues, de todos eles e nós.

Se o leitor, aqui como a médica-psicanalista, que afundou nesse rio com profundidade, verá o quanto só há lucidez e permanência noutro tipo de vida imanente, o sonho. O sonho é um tipo de vida ou de morte? Eles se misturam, se repetem. Sempre.

De se repetir e se repetir, compulsivo, paranoico, o narrador vai em busca de alguma identificação.

Na primeira parte do romance, vive o jogo dos espelhos com os outros personagens, cada um com sua dor e vazios. Eles não se olham diretamente. Vivem sua própria Woodstock fracassada. Prevalece entre eles o olhar por um tipo de panóptico ou periscópio, daí a narrativa-caleidoscópio. São Alices diante de espelhos. Em O inferno das repetições, poder-se-ia fazer uma associação com o que Deleuze nos diz sobre as aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho, de Lewis Carroll: “Em Alice há apenas uma aventura, a sua ascensão à superfície, sua desmistificação da falsa profundidade”. Num tipo de romance de formação, os vemos virarem fumaça. Espectros. Reflexos deformados.

No entanto, o desdobramento dos silêncios e silenciamentos toma corpo nos personagens, nas gerações; e no leitor, que se centra e descentra nas inúmeras camadas: sonhos, reminiscências e imaginação.

O inferno de Sidney Rocha é a fragilidade da vida, como numa cena das mais traumáticas, o leitor se depara com um “gato perseguindo uma aranha no piso branco da antessala. Ele punha a pata sobre o inseto e era tão delicado naquilo, que aranhazinha, sem saber que o fantasma da morte pousava sobre sua cabeça, vivia a vida”.

Nesse e noutros momentos, o autor nos coloca diante da força bruta das palavras, nessa falência de Omar e seus fantasmas, tudo em violência máxima.

E não há paz nesse romance? Parece que não. Em nenhuma parte?

Na segunda parte, sabemos mais de Martin, filho de Omar e Violeta. “Um castelo firme, firmíssimo, um castelo sem moradores e cheio de alheamentos”, é assim que Omar descreve o autismo do filho. A relação dos dois é a não comunicação. Aos seis anos, assistindo ao filme Fantasia, da Disney, Martin para de falar. Neste ponto, temos uma síntese traumática, metaforizada em excessos de cores, de músicas, de um mundo mágico. Sabemos dos avós paternos de Martin, cujas vidas também foram permeadas pelos vazios e pelos traumas. Para Christopher Bollas, psicanalista, o trabalho com crianças autistas ensina a acompanhar o elemento silencioso no adulto: “uma criança pode não dizer uma palavra, mas se expressa por seu silêncio denso e preocupado e pelo uso mimético das pessoas. Ela se instala dentro do outro, obrigando-o a experienciar o colapso da linguagem”.

Na segunda parte do romance, o narrador busca se apropriar de “um lugar em si”. Desde que não sinta dor.

Separa-se de Violeta e encontra Solange, que tem a metade de sua idade. Situa-se aí a densidade do romance, onde todos os elementos confluem e, paradoxalmente, os personagens e seus caminhos voltam a deslizar na superfície.

Para o leitor a ideia é de mais uma vez, o desdobramento da profundidade na superfície, o que faz lembrar o conceito da arte superflat do artista plástico japonês Murakami.

Voltemos às anotações da sessão: talvez a questão da dúvida, em relação ao sentido da existência, seja a essência de O inferno das repetições. Diz Omar: “A dúvida amarga tudo. (...) Afundo. Essa palavra eu gostaria de pronunciá-la à minha médica”.

Aqui se abre uma outra brecha, um pedido de ajuda. O especialista Dr. Wernicke tenta decifrar o enigma, o “omaroscópio”. “Ele continua preso. Já lhe expliquei? Nosso cérebro não entende o ternontontem nem anteontem nem o hojontem nem o anteamanhã. Quando a gente se lembra de algo, aquilo tudo está ocorrendo de verdade, de novo. Assim é a neurologia. Recordar a dor é fazer tudo doer outra vez. Remoer. E dói. O cérebro é esse tipo de máquina agora.”

Eis o horror, outra vez. O horror. O horror.

Já esta médica-leitora, aqui, está inundada pelos sentidos em torno do romance. Se se perdeu na concatenação das ideias numa primeira leitura, do nada, numa tarde qualquer, entre um paciente e outro, foi tomada/inundada pelo romance. Daí pode perceber que O inferno das repetições é a busca incessante por dar sentido a existências que foram esvaziadas de sentido. Sem purgatórios. Sem perdão. Só depois de ser tomada pela densidade do romance, ela se dá na corporeidade da leitora é assim foi possível perceber a tentativa de Omar representar nela o seu silêncio denso e sua dor inaudita através de uma outra linguagem: o coração sem palavras. Já não é mais a mesma. A vida mudou.