Hallina Beltrão


Talvez seja impossível entender o que sentiu um russo – principalmente um russo revolucionário – durante a revolução bolchevique que deu origem à União Soviética sem ajuda de John Reed. Em 1917, quando foi enviado pelo jornal socialista The Masses para cobrir a efervescente Rússia, o americano já era um experiente repórter, tendo acompanhado a revolução mexicana para escrever o livro México insurgente, em 1914. Seu mais famoso trabalho, a reportagem Dez dias que abalaram o mundo, publicada em 1919, é essencial para se entender não só o contexto e velocidade do momento histórico russo, mas para se acompanhar a própria evolução do jornalismo. Reed acompanhou com proximidade e parcialidade os acontecimentos que levaram ao levante bolchevique, liderado por Lênin e Trotsky.

Desde o primeiro momento, fica claro que seu compromisso é jornalístico, mas que  existe um filtro socialista, que se solidariza com a luta operária e camponesa. Em alguns momentos, a comoção do jornalista americano fica evidente até graficamente no texto, pontuado com exclamações e reticências.

A narrativa é encadeada pelo percurso de Reed por Petrogrado e pelo restante da Rússia, pelos discursos e declarações que ouviu de líderes e cidadãos comuns e por documentos, panfletos e jornais. A capacidade do livro de fazer o leitor sentir o ambiente revolucionário se dá justamente nessa junção da experiência documental e pessoal.

O livro também traz à tona algumas curiosidades. Nele, fica claro que a revolução bolchevique foi feita principalmente através de pressões e cercos, com conflitos, batalhas e mortes em segundo plano. Além disso, Stalin, ditador da União Soviética pós-Lênin, é uma mera citação solitária, um personagem quase ausente no momento da revolução – o oposto do seu rival Trotsky, tão importante quanto Lênin no livro de Reed.

A obra, lançada pela Companhia das Letras na sua coleção de clássicos, em parceria com a britânica Penguin, tem uma edição primorosa. Mais do que as cerca de 320 páginas da obra, Dez dias... é enriquecido com quase 200 folhas de notas do autor, cronologia dos eventos e prefácio, escrito por ninguém menos que Lênin.

O principal texto complementar, no entanto, é a introdução do historiador britânico A. J. P.  Taylor, de 1964. Apesar de reservar elogios ao autor, chegando a afirmar que “pela primeira vez, um grande tema encontrou um narrador à altura”, Taylor tece fortes críticas históricas a Reed. Segundo o historiador, o americano em alguns momentos usou de fragmentos de conversa e até imaginou detalhes – o que torna o livro, em boa parte, ficcional. Chega até a causar espanto a presença de uma introdução tão crítica, que chegou a ser rejeitada e só veio a público em 1977. Ainda que com ressalvas, Taylor enaltece esse que é um dos mais completos e importantes textos jornalísticos: “Seu grande mérito foi ter captado o espírito daqueles dias tão arrebatadores”.


Reportagem
Dez dias que abalaram o mundo
Autor: John Reed
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 28
Páginas: 504


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