Antigamente, o mundo era pequeno, bem pequeno. Nele viviam outras gentes, animais-humanos do primeiro tempo. Nessa época, tiveram início a inveja, a teimosia e a rivalidade, dando lugar a desavenças que causaram disputas mortais entre as famílias. Mas os seres do primeiro tempo iniciaram também os benzimentos, fórmulas verbais capazes de curar e proteger as pessoas dos perigos — daí o poder das palavras ter um papel fundamental em nossas vidas. Todas essas coisas surgiram no tempo primordial e continuam vivas nos dias de hoje, ficando como um legado para a humanidade.

Assim, em Umbigo do mundo: Mitologia, ritual e memória baniwa waliperedakeenaai, a antropóloga Francy Baniwa nos convida a viajar pela mitologia do seu povo, para entendermos como o mundo surgiu e foi se transformando. Publicada pela editora Dantes, a obra é uma versão revisada de sua dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2019 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Umbigo do mundo conta ainda com 70 ilustrações em aquarela de Frank Baniwa, irmão da autora, num belíssimo diálogo entre texto e imagem, que se nota desde a capa.

“Nossas histórias são reais, sempre foram e continuarão sendo”, escreve Francy na abertura do livro, descrito por ela como uma “autoetnografia”. Em conversa com o seu pai, o maadzero (sábio) Francisco Luiz Fontes — mestre de danças, cantos e instrumentos musicais, além de narrador, benzedor e artesão —, ela se propôs a transcrever e traduzir alguns dos mitos mais importantes que narram a criação do mundo, fazendo análises e comentários de “dentro para fora”, isto é, falando sobre o seu povo para pessoas não indígenas.

Deste modo, ao longo dos capítulos podemos conhecer o extenso ciclo mítico de origem do mundo, por meio das ações e transformações de Ñapirikoli, Kowai, Kaali, Dzooli e Amaro, até desembarcarmos na cachoeira de Hiipana, no Rio Ayari, afluente do Rio Içana, onde está o umbigo do mundo, local do surgimento da humanidade. A partir dali se deu a distribuição de todos os clãs e povos, com a humanidade se espalhando para lugares distantes em diversas partes do mundo.

Em uma dessas narrativas, Ñapirikoli, ser supremo da cosmologia baniwa, responsável pela forma e essência do mundo, engravida sua tia Amaro com o poder do pensamento. Quando chega o momento do parto, a criança não pode nascer pois Amaro não tem uma vagina. Ñapirikoli pede a ela que se sente e se abra na proa de uma canoa, tentando furá-la com três tipos de peixe. Na terceira e última tentativa, Ñapirikoli consegue fazer sua vagina, e Amaro dá à luz a Kowai.

Durante a pesquisa, as conversas entre Francy e seu pai eram realizadas em meio a atividades cotidianas: durante as colheitas de mandioca na roça, enquanto chupavam cana ou se deslocavam para caçar, dentro da canoa enquanto pescavam ou então quando a autora estava deitada na rede embaixo dos açaizeiros. Como cresceu ouvindo essas histórias, a diferença era o gravador ligado para registrar as narrativas. “Este foi um dos trabalhos que fiz com todo prazer do mundo; eu sabia que era antropóloga, mas o que falava mais fortemente é que sou indígena. Meu pai dizia, entre risos: ‘Cadê a pesquisadora antropóloga?’”

Francy e o pai foram pensando juntos na organização do texto, escolhendo a sequência em que as histórias seriam contadas. Os mitos foram narrados por ele em nheengatu, língua geral amazônica, com algumas passagens na língua baniwa. A partir de cada mito havia um debate entre eles sobre os significados da história no presente, uma vez que tudo que ocorre nos dias atuais pode ser compreendido com base nos mitos, entendidos por Francy como um conjunto de princípios que norteiam e regem a ética baniwa. Assim, em meio à descrição dos mitos, a obra aborda em detalhes a importância dos valores de partilha e convivialidade presentes na vida cotidiana.

“Nesse processo”, escreve a autora, “aprendi a cantar, aprendi a benzer um pouco, entendi o que é um benzimento, descobri o surgimento das danças, fiz traduções de linguagens de outros mundos, descobri tudo, e hoje tenho como explicar cada surgimento e cada transformação que aconteceu. Vejo uma pedra, vejo um pássaro, vejo um peixe, vejo uma árvore, e sei o porquê de tudo isso, pois aprendi outra linguagem, diferente, não a minha, mas a língua deles, de outros seres. Descobri como o mito comporta uma multiplicidade.”

Francy Baniwa nasceu na comunidade de Assunção do Içana, na Terra Indígena Alto Rio Negro (no noroeste amazônico), onde passou a infância e a juventude. Sua formação escolar ocorreu em uma escola indígena, com professores da sua própria comunidade. Graduada em sociologia pela Universidade Federal do Amazonas, atualmente ela é doutoranda em antropologia social no Museu Nacional da UFRJ. Foi coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro e do projeto “Vida e arte das mulheres Baniwa: Um olhar de dentro para fora”, parceria da Unesco com o Museu do Índio. Além disso, é diretora do documentário Kupixá asui peé itá — A roça e seus caminhos, de 2020.

“Se fosse para resumir quem eu sou, eu diria que sou multifuncional, pois sei cuidar da roça, plantar, arrancar mandioca, fazer farinha, beiju, tapioca, maçoca; conheço a floresta, os lugares de pesca e de caça. E, assim como minhas irmãs, somos pescadoras, deixamos anzol à noite com lanterna. Sei subir em açaí-do-mato. Além de saber os segredos da roça e seus mistérios, nós entendemos sua linguagem, pois ela se comunica com a gente por sinais.”

NARRATIVAS ANCESTRAISE PRESTAÇÃO DA MEMÓRIA
Desde os anos 1990, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) publica a importante coleção Narradores indígenas do Rio Negro, que conta até o momento com nove livros de narrativas ancestrais dos povos Desana, Baniwa, Tariano e Tukano, escritos em autoria compartilhada entre um narrador indígena e seu filho, que transcreve e organiza o texto, em geral com o auxílio de um antropólogo não indígena. A iniciativa surgiu do interesse, demonstrado por diversos povos indígenas da região, em preservar as memórias ancestrais para as próximas gerações.

Como argumenta o antropólogo Geraldo Andrello,[nota1] a publicação dessas narrativas visa, por um lado, a circulação dos livros entre as diferentes comunidades do noroeste amazônico, e, por outro, rechaçar a imagem de uma indianidade genérica, construída no contexto das relações com os brancos. Assim, “apropriando-se da escrita e dos papéis, um dos mais fortes índices da civilização, os autores dos livros fazem questão, sobretudo, de enunciar os nomes de seus ancestrais, que são, ao mesmo tempo e ainda hoje, seus próprios nomes pessoais e o de seus clãs”. Andrello lembra ainda que os conhecimentos registrados e editados em formato literário associam-se a uma linhagem de escritos indígenas nem tão recente, em geral oculta sob as publicações de antropólogos.

Desse modo, se é possível ler Umbigo do mundo dentro desse amplo quadro de narrativas do Alto Rio Negro, é preciso sublinhar que se trata de um livro de uma antropóloga indígena, escrevendo sobre a história do seu povo sem o auxílio de intérpretes. Além disso, chama a atenção o fato de que essas histórias, transcritas e comentadas com notável talento literário, são fruto da conversa do narrador com sua filha, algo inédito na literatura da região.

A partir do seu olhar como antropóloga, Francy não deixava de apresentar seus incômodos e inquietações diante de algumas narrativas, ouvindo do pai que certos momentos precisaram acontecer para ficar como um ensinamento para a humanidade: “Assim era. Assim aconteceu”, dizia Francisco para a filha. Ao ouvir diferentes versões da narrativa de Kaali, o dono das roças, contadas por pessoas de sua família, ela observa que a única variante que apontava os homens como teimosos e desobedientes foi narrada por sua tia Bibiana. “Certamente, não por acaso, esta versão tenha sido contada por uma mulher”. Nas outras, narradas pelos parentes homens, somente as mulheres eram retratadas de tal forma. Entretanto, para a autora, a observação cuidadosa do conjunto de mitos apresentados por ela não deixa dúvida de que mulheres e homens eram ambos teimosos e desobedientes.

Francy conta que o pai sempre quis que ela fosse antropóloga, para que pudesse levar adiante o conhecimento de seus avôs e avós. A motivação da pesquisa surgiu da insatisfação de ambos diante de textos escritos por antropólogos brancos. Neles, os animais sagrados da cosmologia baniwa, os Yurupari, eram apresentados como flautas sagradas ligadas aos rituais de iniciação masculina. Francisco queria que a filha fizesse uma correção dessas pesquisas, escrevendo do seu próprio jeito sobre um mundo de muitas transformações, incompreensível para os não indígenas. “Os animais sagrados são, na verdade, animais vivos e com poderes de outros mundos. É verdade que há grandes mistérios em torno disso, mas temos uma facilidade de compreensão sobre tudo o que está ao nosso redor a partir de nossas vivências”.

Analisando as mudanças ao longo da história recente, Francy relata os enormes impactos provocados pelas igrejas cristãs nos territórios indígenas, alterando as formas de organização social e destruindo grande parte dos conhecimentos tradicionais. Dessa forma, ela espera que a publicação da pesquisa em livro possa motivar os jovens indígenas a escreverem outras histórias, a partir de suas próprias experiências, assim como contribuir para a produção de uma outra antropologia, marcada pela forte presença de intelectuais indígenas.

“Diante dessas inquietações e dos desafios de falar sobre o nosso mundo é que escrevo o que penso, em um processo que busca a construção de outra antropologia. É, portanto, fundamental manter-se vivo, preservar o conhecimento tradicional, as narrativas mitológicas, para continuarmos explicando o porquê da existência do mundo e de todas as coisas, como o conhecimento técnico e científico. Estamos sempre em busca do ‘bem-viver e viver bem’ em nosso território, fundamentado na experiência de ‘poder-saber-fazer’”.

NOTA
1. Geraldo Andrello, Falas, objetos e corpos: Autores indígenas no Alto Rio Negro. Em: Revista Brasileira de Ciências Sociais (v. 25, n° 73; p. 5-26; junho/2010). Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/MbwQY8nZxJ6M4Kq9LbmQ9dD/?lang=ptQY8nZxJ6M4Kq9LbmQ9dD/?lang=pt