A autonomia e a expressividade de mulheres, sobretudo negras, são, sem sombra de dúvida, assuntos trabalhados em Apanhadora de pássaros, primeiro romance da estadunidense Gayl Jones no Brasil, traduzido pela poeta Nina Rizzi e publicado pela Editora Instante. Esses temas não são elaborados por uma via óbvia: seus personagens são moralmente ambíguos e estão envolvidos em situações complexas (violentas e cômicas, por vezes) que atravessam o livro sem permitir categorizações fáceis (bom ou mau) pelo leitor. Porém, mais do que a encenação de ambiguidades irredutíveis a soluções fáceis, o que marca a experiência de leitura do livro é o trabalho literário de Jones.
Apanhadora de pássaros é narrado de forma não linear em primeira pessoa pela escritora Amanda Wordlaw, mulher negra que escrevia romances eróticos e passou a escrever livros sobre viagens – duas searas historicamente excludentes para mulheres. O romance elenca situações vividas (material e imaginativamente) por Amanda junto ao casal Ernest e Catherine Shuger - ambos negros e ela, uma renomada escultora reportada como insana por sempre tentar matar o marido (que trabalha com divulgação científica) de maneiras imprevisíveis. Não se entende o que mantém junto o casal, apesar de algo ser progressivamente desvelado no decorrer da narrativa. A partir das situações geradas pela convivência é que se desdobram histórias de vida de Amanda e de outras mulheres, como a interna Gwendola e a pintora Gillette, compondo um mosaico tanto de opressões quanto de respostas a elas. A certa altura do romance, Catherine explica a Gillette que está interessada em improvisação, “assemblage, objetos encontrados, esse tipo de coisa”, trecho que parece se referir tanto às tentativas de usar qualquer objeto disponível para assassinar o marido quanto à composição da escultura que dá título à obra.
Entre estadias com o casal e viagens, Amanda expõe muitos não ditos que permanecem como tal, levando os leitores a tratar as lacunas na narrativa como um reforço daquilo que é contado, daquilo que é diretamente exposto como acontecimento entre personagens. Não sabemos toda a história de Catherine e Ernest, mas quando ela e Amanda conversam sobre como no casamento as mulheres podem ser diminuídas pelos parceiros, a etiqueta psiquiátrica sobre a escultora é fragilizada e isso sugere outra perspectiva sobre o jogo entre liberdade e prisão que ronda o casal e que aparenta atrair a narradora. Esta dinâmica também parece querer capturar quem lê não apenas pela dicção corrosiva da narradora ou pelas tensões e histórias contadas sem cronologia convencional (que criam e desdobram expectativas a respeito da relação do trio), mas também pela convocação direta, velho recurso das tradições orais e escritas: “Quero falar de pessoas comuns, como você e eu”, anuncia Amanda, usando um pronome de tratamento (“você”) que sugere alguma igualdade entre quem escreve e quem lê, insinuação de que haverá algo interessante no que será narrado.
As faltas e ambiguidades se veem não apenas na organização do texto e no comportamento dos personagens; elas também comparecem no trabalho mais detido sobre as palavras, em especial os nomes próprios – wordlaw, “palavra da Lei”; shuger, termo cuja pronúncia é igual a sugar (“açúcar”), evocando uma doçura que só existe enquanto ironia; nos vários nomes para certos personagens (como a filha de Gillette ou o namorado brasileiro de Amanda); e ainda no uso dos nomes como mascaramento ou como forma genérica de figuração, por exemplo. Há atos falhos (entre os termos “adaptar” e “adotar” ou “afagar”/“agarrar”, por exemplo) e, no caso de Ernest, a busca por uma precisão inútil que parece operar como uma forma de controle (a exemplo da correção que ele faz à esposa da diferença entre mercurocromo e mercúrio).
A evidente diferença de dicção entre homens, mais envolventes e tranquilos, e mulheres, que sempre falam com uma raiva intrínseca, se associa às várias situações de machismo que pontuam a trama (praticadas por homens e reproduzidas por mulheres) para deixar evidente que estamos, no livro, em uma discussão sobre gênero. A questão racial está a todo tempo encampada pelas escolhas estruturais: o trio de personagens negros está em posição de criação e de poder emitir discursos autorizados, ainda que esse poder seja contestado (no caso das mulheres). Questões racistas surgem – mas os três, ao não emitirem falas (óbvias ou não) antirracistas, ou apontam para outras preocupações em suas vidas, o que parece ser uma recusa discreta e enfática de serem limitados à experiência de racialização; ou deixam a situação terminar com um vazio incômodo, um recurso também usado para finalizar sequências de opressão de gênero, que deixa a tensão à disposição da sensibilidade de quem lê.
Lançado em 1986 em alemão e publicado em inglês no ano passado, Apanhadora de pássaros é uma obra de seu tempo: as questões sobre autonomia e expressividade nela elaboradas eram mais candentes quando de sua primeira publicação, em que os feminismos (negro ou não) não tinham a circulação que têm hoje. Tanto porque a tecnologia não é um elemento de destaque na construção da obra (o que poderia apontar uma temporalidade de forma mais direta) quanto porque as mulheres continuam a enfrentar opressões sobre si, o livro soa muito contemporâneo à primeira vista. Mas é mais pelas suas qualidades literárias que o projetam para além do tempo de sua primeira publicação – qualidades com as quais Jones construiu uma bem-sucedida carreira como escritora. Essa reputação se revela, também, nas leituras de suas contemporâneas, mesmo naquelas que não são positivas.
A poeta e ensaísta Audre Lorde (1934-1992), em um texto sem data – publicado no Brasil em Sou sua irmã (Ubu Editora), seleta de não ficção traduzida por Stephanie Borges – sobre o segundo livro de Jones, Eva’s man (1976), afirma, em rápida passagem de encerramento do texto, que a obra é bem escrita, o que soa como um reconhecimento de algo positivo sobre o trabalho. Entretanto, essa positividade contrasta com o que Lorde entende como escolhas de representação problemáticas feitas pela autora. Classifica o trabalho como um “livrinho inumano” que aborda sem “honestidade emocional” as violências que ocorrem com mulheres, que evoca “a velha matéria-prima feminina de sangue, desespero e loucura” e no qual qualquer “encontro possível de mulheres é tratado sem calor, com triste desdém”. Lorde, no texto, parece buscar na obra citada uma ética da representação de mulheres negras (e de suas questões) que de alguma forma converse de modo mais evidente com seu próprio projeto literário – que entende a matéria da vida sempre como uma experiência a ser elaborada e jamais como um problema, tratando o trabalho de linguagem não como um luxo (ela diz isso sobre a poesia), mas como uma necessidade vital.
Porém, para Gayl Jones, imagens positivas de raça (positive race images) “são boas desde que sejam personalidades muito complexas e interessantes”, diz ela na entrevista à crítica literária Claudia Tate (1947-2002) e publicada no livro Black women writers (1985). E prossegue: “Não estou interessada em personagens normais. Isto se relaciona a toda a questão de imagens positivas ou negativas: o que faz uma escritora negra [black writer] que não está interessada no normal?”. Se há uma honestidade em Apanhadora de pássaros, ela ocorre em relação à própria humanidade da narradora, que recusa se alinhar a uma positividade óbvia, exemplar em um sentido comum. Vê-se tal humanidade no desejo de autonomia que a faz abandonar pessoas e projetos; nos silêncios desinteressados e mesmo na atração pela aparente irracionalidade que cruza a estranha relação de Amanda com Catherine e Ernest; esse desejo também é visível na encenação da reflexividade sobre si mesma, que faz a narradora reconhecer que sua história é fruto de uma única perspectiva sobre os fatos. Uma perspectiva em que sonho, realidade e insanidade são convocadas em pé de igualdade
Escolher narrar a história desta forma e não de uma outra: aí também representa-se, na costura do texto de Gayl Jones, uma humanidade.
Nascida em 1949 no sul dos Estados Unidos e longe da vida pública desde 1998, Jones lecionou nas universidades de Michigan e Wellesley. Retomou a carreira literária em grande estilo ao publicar Palmares (2021), um romance histórico que foi finalista do Prêmio Pulitzer no ano passado. Na entrevista concedida a Claudia Tate, ela diz pensar em si mesma principalmente como uma contadora de histórias (storyteller) cujo processo é baseado em improviso e não em espontaneidade. Esta diferenciação é estabelecida sem detalhamento, mas Jones indica que monta um esboço dos eventos, nomes e outros elementos que deseja incluir nas suas ficções, sugerindo um processo aberto o suficiente para acolher mudanças. Poderia dialogar com o mencionado interesse de Catherine pelo improviso e pela assemblage se pensássemos o manejo das tradições orais afro-americanas e das referências do cânone ocidental (como Cervantes), feitos em Apanhadora, como uma forma própria da lógica de acúmulo de elementos (neste caso, literários). O improviso ainda a faz acenar enfaticamente ao jazz, tradição preta que o trabalha como procedimento fundamental, com ressonâncias políticas.
Centrado em uma protagonista escravizada que foge para o grande quilombo e que busca o marido perdido em batalha, Palmares foi entregue para publicação em 1997, mas a autora decidiu retomá-lo para revisão e passou mais 23 anos até chegar à forma finalmente publicada. Além dele e de Apanhadora, nos últimos anos três novas obras de Jones foram publicadas nos Estados Unidos: Deep songs and another poems, Song for Almeyda and Song for Anninho e Butter, esta lançada em abril último. O Brasil é um interesse antigo da autora e comparece em várias de suas ficções – outro exemplo é seu aclamado romance de estreia, Corregidora (1975), editado por Toni Morrison.