SolangeRodriguezPappe FreddyEduardo Divulgação agosto.23

 

Existe um tipo de perspectiva ética e política do contemporâneo, presente na investigação teórica empreendida por Julieta Yelin,[nota 1] intitulada Biopoéticas para las biopolíticas: El pensamiento literario latinoamericano ante la cuestión animal, que se desloca em confluência com a leitura de Uma nova espécie, conjunto de contos da autora equatoriana Solange Rodríguez Pappe. O livro, lançado no Brasil, com tradução de René Duarte, pela Editora Peabiru – casa editorial que tem a proposta de publicar somente autores latino-americanos –, é composto por treze contos nos quais o leitor estabelece um pacto entre este mundo e um outro, universo no qual a literatura aproxima-se do vivente: onde o ser humano é visto também como processo, uma leitura do corpo em suas subjetividades não-humanas.

No conto Calamidade doméstica, a narradora, presa em um porão, conta o seu sonho de forma a compor uma paisagem que receba o seu corpo cansado, animal exausto que coloca os pés no chão para encontrar conforto e, ao mesmo tempo, possibilidade de vida, mesmo que tudo queime: “Como não sei bem como é o mundo lá fora, tudo no sonho é verde, cheio de plantas e ervas daninhas que crescem do chão. Corro mais e corro descalça pelo campo aberto até cansar e ter que me deitar. Atrás das minhas pálpebras tudo pega fogo. Durmo”. O que se encontra em Uma nova espécie é um catálogo do horror latino-americano que só se faz possível quando se elege o corpo como condutor – e, neste ponto, penso em condutor no sentido do que carrega ou transporta, como se fosse possível movimentar cada pequena destruição do nosso continente e de seu país por meio de personagens precários e, ao mesmo tempo, ainda muito vivos. Um corpo que quase morre é um corpo que quase vive, e está aí o maior dos horrores ao qual estamos condenados.

Assim, sublinho que não se trata de esmiuçar, neste texto, o paradigma teórico proposto por Yelin, que apresenta uma pesquisa extensa sobre o conceito de biopolítica – desde Michel Foucault (1926–1984) até autores que discutem o termo nos últimos anos, como Roberto Esposito – mas de observar de que formas a biopoética, ideia discutida pela pesquisadora, atravessa os escritos de Pappe. De acordo com Yelin, na biopoética, o pensamento do corpo tem lugar, “para que a vida se pense por si mesma”, por meio do trabalho do escritor e do crítico. Dito isso, observa-se nos contos de Pappe um contínuo exercício de aproximação às formas de vida, mesmo quando tudo o que resta é uma paisagem arrasada, engolida por névoas, fogo e corpos ensanguentados. A questão animal em seus contos está posta não só pela presença concreta deles – gatos, cervos, cachorros – mas como um tipo de vontade de torcer o pensamento racional (humano, digamos) e afiar as facas da metamorfose até que se possa ser bicho e ser gente na mesma medida.

No conto A mãe, por exemplo, surge novamente uma referência à dimensão onírica, na qual é aventada a chance de uma troca de pesadelos entre criaturas animalescas e seres humanos: “Há rumores de que, anos atrás, na casa da samaúma havia uma clínica do sono onde eram realizadas experiências de transferência de pesadelos de animais para cérebros humanos. Então os pacientes tiveram um acesso de raiva quando entraram nos sonhos de certo animal doente e morderam todo mundo”. Aqui, relembro um trecho no qual Yelin disserta sobre como o texto latino-americano, dentro de uma crise do discurso humanista, pode ser tensionado entre o humano e o animal-monstro, como também entre o humano e a linguagem – infância, loucura, agonia. Dessa forma, existe uma incerteza que questiona a constituição do eu e o coloca em contato com a possibilidade de acessar outros tipos de estados: da raiva animal à volta ao colo da mãe, agora morta, como no conto Véspera de finados, esse é um movimento de oscilação que Pappe efetua muito bem ao longo de todas as narrativas.

Nascida em Guayaquil, maior cidade do Equador, a autora firmou-se como uma reconhecida contista nos últimos anos, ganhando prêmios e traduções. Em entrevista concedida a Beatriz Soares Benedito, publicada na edição de número sete da revista Puñado, a equatoriana afirma que “existe uma linha muito curiosa que lê a América Latina numa chave apocalíptica”, e que consegue ler a sua cidade “como uma cidade de póstumos, que se equilibra em meio à morte e à violência sem se angustiar, pois essa realidade já faz parte de sua rotina”. No sentido de como a autora desenvolve o gênero textual, é interessante observar que seus contos terminam próximo a um sussurro, algo que se diz de última hora e, então, o leitor está sozinho e novo, em busca desse equilíbrio em meio à morte e à violência.

Em outro ponto de Calamidade doméstica, a narradora confessa: “Sempre me pergunto, em vão, tantas coisas, quando a vida é sobre passar por acontecimentos simples e lógicos que nada têm a ver com a imaginação, porque quase nunca há esperança de mudar o que nos aconteceu.”, como em um rompante de racionalidade e frieza que logo se quebra quando a personagem decide fugir de seu cárcere e segue em direção à liberdade do mundo. Penso, então, que é nesta ocorrência exata onde são possíveis as aparições de uma nova espécie, no instante no qual se conjura coragem para colocar o corpo em diversos atravessamentos, na vontade de continuar sem razão e com a força de vida nos dentes, nas unhas e na voz que se perpetua na escrita.


NOTA

[nota 1]. Julieta Yelin é doutora em Humanidades/Literatura pela Universidade Nacional de Rosario (Argentina). É pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas de seu país natal.