Mat. Capa 1 Maria Julia Moreira

 

 

Estilhaçadas, dispersas no tempo e no espaço e definitivamente emudecidas (“Toda a música de Safo/ se perdeu”), as palavras da grande poeta da Antiguidade chegaram até nós em ruínas, “cercadas de silêncio/ por todos os lados”, restos de textos incompletos e fascinantes como cartas encontradas no interior de garrafas atiradas ao mar. Lançados a partir da ilha grega de Lesbos, provavelmente no século VI a. C., os poemas de Safo (que pertencem à tradição da poesia mélica e têm o desejo como matéria fundamental) seguiram o caminho das águas, espalharam-se em várias direções e atravessaram o tempo. Seu eco amoroso ressoa em nossa época e nos faz, ainda agora, procurar Lesbos nos atlas ou no Google Earth.

Dessa ilha grega, porém, hoje já não partem mais versos (pelo menos não como os que antes partiam). De lá, chegam notícias e imagens perturbadoras. A Lesbos vão ter agora, sem cessar, barcos improvisados, botes precários vindos dos continentes ao redor, embarcações clandestinas carregadas de corpos exaustos de imigrantes, pessoas que alguns dos territórios em crise do mundo contemporâneo expelem a todo momento, empurrando-as para o mar. Lesbos é o porto incerto de muitas delas. Através da ilha, tentam acessar a União Europeia.

A coincidência é terrível: a terra de Safo, ilha vulcânica do desejo, conhece agora outros fogos: o inferno da fome e do desabrigo. Foi preciso que uma outra poeta, distante no tempo e no espaço (no Brasil), falando e escrevendo em outra língua (o português do Novo Mundo, um dos idiomas da diáspora moderna), percebesse a sobreposição dos mapas e dos destinos e se propusesse a refletir sobre ela. Refletir, reflexionar é, como se sabe, dar outro significado – outra direção – às ideias e aos textos lidos. Foi portanto a partir desse lugar diferencial e da dobra reflexiva ensejada pela escrita poética que Ana Martins Marques, um dos nomes incontornáveis da poesia brasileira do século XXI, pôde notar: os limites entre os corpos são também geográficos, são matéria da política e não só do amor: “Eros/ diz Anne Carson,/ tem a ver com fronteira”.

Com os recursos poéticos da citacionalidade, da colagem e da escrita não-criativa, Ana Martins Marques pôs-se a pensar a beleza e a tragédia que envolvem os textos de Safo e a vida dos refugiados que se abrigam na ilha. É essa matéria ao mesmo tempo rica e problemática que dá corpo ao seu mais recente livro, De uma a outra ilha. Neste novo trabalho, a poeta põe-se duplamente a escutar – imaginando mais do que ouvindo propriamente – a voz de Safo e as vozes dos emigrantes chegados a Lesbos, compondo com elas, da mistura de seus timbres e desejos, de seus lamentos e silêncios, o longo poema em fragmentos que a coleção Círculo de Poemas, das editoras Luna Parque e Fósforo, publica agora.

Este é um livro sobre a escuta, e é também um poema a muitas vozes. Mais do que nos outros volumes da autora (que já tinha experimentado a escrita a quatro mãos em dois projetos anteriores, Duas Janelas, com Marcos Siscar, e Como se fosse a casa, com Eduardo Jorge), nesse a escrita do poema se dá com e através de falas e textos alheios. A apropriação e a repetição-em-diferença (a reescrita) são os dispositivos formais decisivos, além da montagem poética constelar. Como corpos celestes dispersos, versos de Safo estão por todo o livro, desmembrados como referências que a poeta procura reelaborar.

Em De uma a outra ilha, Ana Martins Marques lê Safo e escreve por entre as lacunas do que restou da sua poesia, procurando atender ao chamado das ruínas. Atraída pelas interrupções bruscas e pelos espaços em branco, a poeta ora subverte, ora monumentaliza os versos sáficos – busca sinais, interpreta, quer continuar o que o tempo rasurou, lançar ao futuro (o nosso tempo) a força desses fragmentos.

Mas não se trata de produzir variantes da poesia Antiga, em jogos intertextuais semelhantes ao que a tradição, há séculos, vem fazendo. Ao contrário, Ana Martins Marques quer atualizar de modo selvagem os fragmentos poéticos arrancados ao passado. Quer fazer justiça a eles, como um dia disse Walter Benjamin dos resíduos e dos farrapos; ela quer utilizá-los. Ao propor justaposições inesperadas de tempos e discursos diversos – os poemas de Safo lado a lado com as notícias de jornal e as postagens das redes sociais –, Ana insere a poeta grega no turbilhão da História contemporânea, fazendo com que as palavras que ela um dia cantou sejam agora, de forma deliberadamente anacrônica, parte de outra realidade, assimiladas por outros corpos:

A ilha é verde/ esmeralda/ Nos botes/ os emigrantes sonham/ calçar a relva tenra/ com seus pés molhados// queimam de desejo/ e anseiam por [ ]// como queimou o campo/ de refugiados de Moria/ o mais insalubre da Europa/ que chegou a abrigar mais de 12 mil imigrantes,/ quatro vezes mais que sua capacidade declarada,/ incluindo 4 mil crianças e adolescentes

Tudo se desloca a partir do gesto disjuntivo da citação. As estrofes iniciais, que apresentam liricamente o ponto de vista dos emigrantes, transformam-se. A delicadeza da imagem da acolhida sonhada (a relva, emanação do próprio chão, como um calçado que envolveria os pés dos que não pisam terra firme) ganha algo de ânsia violenta e desespero. O mesmo ocorre com a estrofe seguinte, que desdobra num comentário sombrio o erotismo do verso de Safo.

Em todo esse trecho, que abre o livro e revela ao leitor como se dá a mistura de textos e tempos que o caracteriza, não são os corpos dos amantes que ardem um pelo outro, mas a vida precária dos refugiados de Lesbos – o fogo é pura destruição, sem as ambiguidades do amor: “Uma coisa é incendiar-se o coração/ outra coisa, incendiarem-se os sapatos”, assinala a poeta. Não são mais (ou apenas) os apaixonados os que anseiam com avidez, mas os náufragos, aqueles que lutam para salvar as suas vidas e que tudo desejam – eles que nada têm, os “enraizados na errância”.

Diante da grandiosidade e da ausência de certezas sobre os eventos mobilizados para escrita do livro, o legado da poesia sáfica e a épica anônima dos refugiados, Ana Martins Marques se põe a imaginar e a recompor, em De uma a outra ilha, as vidas em jogo no seu poema: os desconhecidos que deixaram para trás seus países, quem são? O que pensavam ou sentiam nos momentos que precederam a fuga? Sobre a própria Safo, o que se sabe? Segundo as poucas e não muito confiáveis informações que restaram, ela teria sido forçada ao exílio na Sicília, “provavelmente por razões políticas”.

Trasladada de um espaço a outro, a Safo imaginada por Ana vai “de uma a outra ilha/ cercada de água e luz/ como uma cabeça/ por uma grinalda”. Seu destino, muitos séculos antes, teria sido o mesmo dos emigrantes – sem condições de permanecer em sua terra, foi forçada a partir. A bela imagem da luz sobre a cabeça da poeta (de onde se extrai o título do livro, aberto a múltiplas leituras) deixa ver a riqueza de matizes do livro-poema de Ana Martins Marques: ainda que os rumores da catástrofe e da morte sejam lembrados pelos retalhos do real que o texto assimila e expõe, a poeta mantém-se atenta a outros ângulos da História. Mesmo no desterro, a realidade pode vestir-se também de sonho e de claridade. Nem tudo é necessariamente obscuro ou violento no trânsito entre os espaços: a água e a luz não afastam, mas emolduram o mundo (e os corpos). Safo, deslocada para outra ilha, continuou a compor; os emigrantes, mesmo sob condições duras, persistem na invenção de uma nova vida.

Derivados desse exercício de escuta e abertura ao outro que se dá no livro, dois elementos merecem destaque. São questões de forma, em última instância, mas que traduzem compromissos éticos mais amplos assumidos no poema. O primeiro tem a ver com o uso dos colchetes, sinais gráficos que indicam, nas transcrições da poesia antiga, passagens desconhecidas. A partir de um trecho de Anne Carson (que traduziu e escreveu sobre Safo), Ana Martins Marques abre intervalos especulativos em seu poema. “Colchetes são excitantes”, diz Carson, “colchetes implicam um espaço livre/ para a aventura da imaginação”. Em De uma a outra ilha, a imaginação é política. Por meio dela, invadem o poema sons e cores das vidas passadas e possíveis dos emigrantes, imagens de outros corpos, menos desesperados ou excepcionais, revelam-se comuns e próximos de nós:

[ ] já se aborreceram/ estragaram os olhos/ em relatórios/ tiveram dúvidas/ sobre se casar ou não/ sobre comprar ou não/ um casaco caro/ seus dias foram cheios/ de tragédias miúdas/ contabilidade e música/ mijaram ao ar livre/ com os olhos na paisagem/ verde e ouro/ se impacientaram esperando/ um amigo uma reunião o elevador/ que um quadro no museu afinal revelasse/ por que é bom como dizem que é] apontaram para o céu fingindo conhecer/ as constelações/ (...)

Outro ponto importante do poema tem a ver com a miríade e a memória das vozes que o compõem. Apesar de uma fotografia abrir o livro, um papiro em frangalhos com trechos de Safo, e de toda a dimensão visual do poema, no qual sinais gráficos – inaudíveis – têm papel fundamental, vai ser no plano do som (e da sua representação dramática e performática como voz) que algumas das questões mais importantes do livro vão se dar. “O poema vem do canto/ diz Jean-Christophe Bailly num ensaio/ e se recorda de ter sido cantado”.

A lembrança fantasmática da música assombra a poesia de Safo, mais, talvez, do que qualquer outro poeta da tradição ocidental. Associada a ritmos e melodias encantatórias, sua obra só sobreviveu, como lembra Guilherme Gontijo Flores na introdução da sua tradução dos Fragmentos completos, porque inúmeros corpos anônimos emprestaram sua voz a Safo. Eles foram Safo ao longo dos séculos, antes e além da escrita, incorporando-a enquanto cantavam e recitavam os seus versos, registrando-os na memória e atualizando-os em performances que, a cada novo ato, preservava e alterava, ao mesmo tempo, os poemas.

Em De uma a outra ilha, algo semelhante vai ocorrer, mas em sentido inverso. E aqui está o sentido ético-político forte dessa poesia. Não são as palavras da poeta (sua voz) que se incorporam em sujeitos anônimos, mas são as vozes dos emigrantes invisíveis que reúnem-se na escrita (no canto) de Ana Martins Marques, podendo, pelo seu texto, ter algo dos seus corpos e das suas vidas registrados. Ana abre-se a muitas vozes e múltiplas identidades ao longo do poema (turistas, usuários do Facebook, repórteres e escritores), mas são as falas e a existência dos exilados – Valencia, Amir, Ali Zaid, Samir Alhabr – que vão marcar o seu texto. É o interesse por esses nomes comuns e pelas suas circunstâncias que faz com que a poeta saia de cena (e de si) e empreste a sua voz aos emudecidos. Trata-se de uma inflexão social muito interessante na poesia de Ana Martins Marques, que vem acrescentar uma dimensão mais marcadamente experimental e política à trajetória da autora, somando-se à conhecida vocação lírica e pensante dos seus poemas.

Nesse novo livro, a autora adiciona novas camadas (e outro significado) a algumas de suas obsessões. O mar, por exemplo. Paisagens marítimas são um motivo recorrente da autora, e em geral estão associados à beleza e à natureza insondável das águas, que se expandem no espaço – o mar é puro movimento, é aquilo que não conhece limites – e no tempo, posto que a “linha de rebentação” funciona como um móbile da memória – pessoal e literária. Dissociados, portanto, da imaginação lírica que circunscrevia os sentidos fundamentais do mar nos seus poemas anteriores, neste o mar é literal e terrível, suas ondas têm peso enorme, a geopolítica e a economia impõem-se e fazem recordar o quão difícil a travessia das águas ainda pode ser. Belo ainda, o mar será também passagem e cemitério, e mais ásperas podem ser as “oferendas para a luz” que vêm à tona ao encontro do dia.

“O pensamento como um hóspede incendiário”, já se podia ler no seu primeiro livro, A vida submarina. São outras águas e outros incêndios que vêm inscrever-se agora na poesia de Ana Martins Marques. Pensar, escrever, propor formas formas novas é pôr-se em risco. Lançar-se ao desconhecido: em muitos sentidos, é isso o que está em jogo neste novo livro.