Essas obras reunidas de Vilma Arêas, ora lançadas pela Editora Fósforo, iniciam-se, por um livro inédito, chamado Tigrão. Os seis volumes anteriormente publicados − Um beijo por mês (2018), Vento sul (2011), Trouxa frouxa (2000), A terceira perna (1992), Aos trancos e relâmpagos (1988) e Partidas (1976) vêm, agora, em ordem invertida: Samuel Titan, que faz a apresentação do volume e foi o promotor dessa iniciativa, chama de “contos” os escritos de Vilma, já avisando que aí a autora “embaralha todas as cartas, as velhas e as novas, que a tradição desse gênero lhe pôs nas mãos”.
Penso que a inversão na ordem do aparecimento das publicações, que a própria Vilma chama de “prosinhas” (e de “recortes” aqueles contidos em Um beijo por mês), deixa aparente, das anteriores para as mais recentes, um processo de essencialização na escrita da autora e na matéria de que trata. Como se chegando ao essencial do que há a ser dito e ao como o dizer com o máximo de naturalidade e objetividade. Ou verdade.
No prefácio que fez ao livro de estreia de Vilma, Partidas, Luiz Costa Lima diverge de sua classificação como realista. Sugere que, por efeito de um corpo a corpo com o cotidiano, alguns dos “contos” de Vilma se aproximam da alegoria, por fazerem alusão a fábulas, mas sem a “moral” que lhes é própria e deixando ressaltar a inquietude que já habitava aquelas histórias infantis. Referindo-se aos escritos mais recentes da autora e tratando de textos que apontam para a experiência histórica presente, Flora Süssekind os caracteriza, entre outras singulares manifestações de alguns artistas de agora, como “figurações cruentas das classes médias”.[nota1]
De que tratam as histórias ou prosinhas? Sem, de maneira nenhuma, esgotar o seu espectro e alcance: de lembranças de episódios (pungentes) acontecidos durante a ditadura; das perdas e da dor; dos mortos e dos vivos − do que os distingue; das tentativas de recuperá-los através de lembranças, de sonhos, pesadelos; e do sonambulismo − a libertação, no sono, para que se procure o perdido e se converse com os mortos. Da culpa e do remorso. De histórias, passadas e presentes, de família − doces, crudelíssimas, engraçadas. De cenas de um cotidiano presente, absurdamente injusto. De reproduções dessas e de outras cenas através de fotografias em que é examinada, escrutinada, até o máximo, a imagem − ali contida e guardada − da injustiça social. Da graça e da poesia que se encontram − para quem é capaz de encontrar − no meio da rua e da vida, ou dos quadros já muito conhecidos, como na miniprosa As bocetinhas de Picasso. Do cenário de miséria das ruas e seus atores − que aproximam comédia e tragédia − como no belíssimo Vestidos de palha. De narrações de visitas a exposições ou mudança de ambientes, em que se constatam − na prática − as consequências estéticas e ideológicas decorrentes da modificação da perspectiva considerada. E de inevitáveis reflexões sobre tudo isso.
Caberia aqui reproduzir a observação do sociólogo Francisco de Oliveira, que escreveu a orelha de Trouxa frouxa: “Escritura menos ideológica que esta não há; ela não quer convencer. Como uma música ao longe, há sempre, no fino humor que destila, compaixão, riso e uma leve amargura”.
Absorvendo o que poderia haver, aqui, de contraditório, Todos juntos respira a contestação, já encarnada pela personagem adolescente da novela (muito intensa e divertida) Aos trancos e relâmpagos. Por exemplo, em Ponto de mira, de Tigrão, por meio da muda exposição da tranquilidade, indiferença e desconhecimento dos burgueses endinheirados, que têm seu passeio de domingo estragado pelo encontro com a miséria, a fome, a violência, o estupro das crianças de rua. Em outra escala, mas na mesma chave, a contestação − em Linhas e trilhos, um dos mais extraordinários contos de Vento sul − se dá contra o desconhecimento, estranhamento dos costumes entre as zonas ricas e as pobres, das cidades grandes. E o consequente reconhecimento do interesse e importância, da poesia do que estando ali, ao lado, parece longínquo, estrangeiro.
Talvez a origem da graça e leveza com que a autora alivia o peso da matéria de que trata esteja no sistematizar essa contestação: são frequentes, nos contos, o desenganar a fantasia e o embelezamento do feio, que se estende para a linguagem. Em Tigrão, a investida é contra a metáfora “cuja função pode ser a de amparar golpes de todo lado, afastando o confronto que a história pode nos oferecer”. Põem-se em dúvida ou se desmentem ditados e frases feitas, que atravessam os tempos como verdades. O texto Instruções de voo, do livro aludido, concentra-se exatamente sobre a questão − “o insubstituível chocolate da desobediência” que, então, é, ela mesma, questionada. Mas na brincadeira...
Mais raramente, embora compensada por sua intensidade, a rebeldia contra a injustiça da situação e seu pacífico consentimento surge com uma ferocidade que evoca a de alguns poemas de Ana Cristina Cesar, que foi contemporânea e amiga de Vilma. Perpassa muitos dos contos de A terceira perna e frequenta, também, Um beijo por mês.
Enfim, a reunião dos livros de ficção de Vilma Arêas não apenas evidencia a qualidade, originalidade e importância da produção da escritora no contexto da literatura brasileira atual, mas oferece, de quebra, o prazer de poder distinguir, entre todas aquelas breves e intensas manifestações de prosa, as que mais nos comovem, pela força de sua beleza, inteligência, graça e coragem.
[nota1] Entrevista a Bolívar Torres para O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2022/08/flora-sussekind-senti-necessidade-de-observar-o-brasil-sob-a-extrema-direita.ghtml