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Até onde sei, este é o sexto livro ou plaqueta de poemas de Sylvia Plath a sair no Brasil. Além de peças esparsas em revistas e antologias, há uma seleção generosa, traduzida e anotada por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça, lançada pela Iluminuras nos anos 1990; uma antologia traduzida por Nádia Montanhini em 2012; e três plaquetas recentes: XXI poemas, por Deisa Chamahum e Ronald Polito; Retrato de Sylvia Plath como artista, por Augusto de Campos; e o poema radiofônico Three women, por Rafael Zacca. Esta Poesia reunida de Plath (Companhia das Letras) não contém todos os poemas da autora: é uma antologia mais que generosa, que inclui as duas únicas coletâneas organizadas (em parte) por Plath e uma seção de poemas esparsos.

A primeira coisa a se louvar a respeito deste volume é o critério de seleção adotado pela tradutora e organizadora, Marília Garcia. Na edição americana dos Collected poems os poemas vêm em ordem cronológica; a informação sobre o que saiu em livro em vida da poeta e o que foi editado depois está presente nos paratextos, mas para ler os poemas na ordem em que aparecem nos livros o leitor é obrigado a consultar uma lista numerada ao final do volume. Ora, os dois livros organizados por Plath — The colossus (1960) e Ariel (postumamente publicado em 1965) — merecem ser destacados do resto do material, que talvez ela ainda pretendesse revisar, ou até mesmo deixar na gaveta. Mas há que fazer uma ressalva: se The colossus foi de fato preparado pela autora, o Ariel que saiu dois anos depois da sua morte não é exatamente o mesmo que ela havia preparado para a publicação. O poeta Ted Hughes (1930-1998), de quem Plath havia se separado pouco antes de se suicidar, refez a seleção original, omitindo algumas peças e acrescentando um punhado de poemas que ela escreveu nas suas últimas semanas de vida, alguns deles seguramente suas obras-primas.

Os poemas de Ariel garantiram a reputação de Plath, e também a marcaram como exemplo de artista visceral, criadora de textos de altíssima voltagem emocional, enfaticamente autobiográficos. Mas, como bem lembra Augusto de Campos na breve introdução a seu livrinho, o mais importante da poesia de Plath não é a visceralidade, e sim a qualidade literária, que nas suas melhores peças é de fato muito elevada. O grande desafio que se oferece à tradutora dessa obra é preservar seu impacto emotivo sem deixar de lado o requintado trabalho de elaboração formal por trás dele.

Um leitor ingênuo pode imaginar que o poema Edge — escrito apenas seis dias antes da morte da autora — brotou de um jorro incontido de emoções. Mas qualquer um que conheça alguma coisa da arte poética perceberá que só uma aguçada consciência artesanal do trabalho com as palavras poderia produzir uma passagem extraordinária como:

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com uma alternância de ou e i que é ecoada, alguns dísticos abaixo, em

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A tradução de Marília Garcia (Limite) revela plena consciência dessa dimensão do trabalho poético de Plath. A primeira passagem acima é recriada com uma sequência de ó, é e i

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— e a segunda, de novo ampliando a paleta vocálica,com é, ã, ô e u, e mais algumas aliterações em f:

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Só temos espaço para mais um exemplo, a primeira estrofe de Daddy, poema em que Plath exorciza seu ódio — irracional, mas nem por isso menos intenso — pelo pai que a “traiu” morrendo quando ela ainda era pequena:

 

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Aqui a forma tem algo de infantil, com três rimas em ú (do-shoe-Achoo) e um par de assonâncias em û (foot), a repetição no primeiro verso, a onomatopeia Achoo — que representa o som de um espirro (“atxu”) — e o ritmo marcado de quatro acentos por verso. A versão de Garcia, Paizinho, trabalha com rimas igualmente repetidas (uma delas incompleta), em quatro dos cinco versos, com o requinte de usar, na sílaba tônica, o fonema u, o som vocálico do português mais próximo da vogal que aparece nas três rimas completas do original; e se não consegue recuperar a onomatopeia, retém a imagem do chulé, acrescentando uma abundância de aliterações em p que ecoam a consoante inicial do título:

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Esta nova coletânea bilíngue faz justiça ao virtuosismo de Plath, graças ao qual ela continuará sendo lida mesmo quando as polêmicas sobre sua trágica relação com Hughes já não despertarem paixões no público. A arte de Sylvia Plath — como, aliás, a de qualquer artista — é o que de fato importa.