Português de nascimento, mas criado no subúrbio do Rio de Janeiro, Adelino Moreira (1918-2002) foi responsável por uma das canções brasileiras mais populares da segunda metade do século passado. Famosa na voz de Nelson Gonçalves, A volta do boêmio, composta em 1957, impressiona pelo modo como seu autor subverte a banalidade da história: é basicamente o marido avisando à esposa que não consegue viver longe da farra. Mas, na forma como Moreira construiu a letra, é como se Ulisses, após o retorno da odisseia, decidisse que a vidinha sossegada ao lado de Penélope não bastasse. Entediado, decide retornar para as aventuras, para as sereias e para a Circe que um dia quase o mataram, com os dedos cruzados por outra guerra de Troia. A volta do boêmio é como se Penélope retomasse a confecção do seu manto e, na hora da despedida, soltasse para Ulisses a resignada despedida: “Vá embora, pois me resta o consolo e alegria/ De saber que depois da boemia/ É de mim que você gosta mais”.
A volta do boêmio é personagem de uma das cenas de Saia da frente do meu sol, romance do escritor carioca Felipe Charbel, uma reconstrução ficcional das memórias que o autor mantém do tio-avô, idoso e doente, que morava no quartinho dos fundos da casa dos seus pais durante sua adolescência. Para além de “idoso e doente”, e de que o parente era uma pessoa “complicada”, o jovem pouco ou nada sabia daquele homem que habitava o cubículo voltado para a área de serviço com basculante e “WC de apoio”, e que, de madrugada, antes dos outros moradores acordarem, levantava para fazer sua higiene, sem o perigo de encontrar quem quer que fosse. Até que um dia ele se depara com o sobrinho voltando para casa de uma farra. É como se o encontro revivesse o homem que um dia foi. Revivesse o Odisseu noturno, que não podia mais ressuscitar em si e que aparecia projetado ali na frente, já em outra geração. “É agora nessa contramão”, como no poema de Ana Cristina Cesar.
Diante da surpresa do encontro, a letra de A volta do boêmio costura um diálogo até então interditado:
“Minha ideia era desaparecer da cozinha o mais rápido que pudesse, não queria que ele notasse que eu estava de porre. Mas acabei me distraindo com os restos anêmicos de um estrogonofe que jazia na geladeira, e essa foi a deixa para que ele carregasse de erres sua voz grave, pigarrenta, surpreendentemente afinada:
– Boemiiiiiiiia, aqui me teeeens de regrrrrrrrrresso.”
Saia da frente do meu sol é uma belíssima e elaborada teia formada por memória familiar, por essa coisa gelatinosa chamada autoficção e, sobretudo, um ensaio sobre o apagamento dos idosos. O que existe por trás dessas pessoas que foram silenciadas pelo tempo. Que histórias elas guardam, que tesão tiveram, que amores, que canções guardaram, por quais odisseias navegaram antes de serem os excêntricos no quarto dos fundos? O que elas foram e o que isso diz sobre aquilo que agora somos? O apagamento sofrido pelo tio-avô é tamanho que Charbel pinça um trecho da certidão de óbito dele por epígrafe: “Não deixou filhos, não deixou bens, não era eleitor e faleceu sem testamento conhecido”. Um desconhecido, um ninguém na hora da morte, nos lembrando da cena em que Ulisses (voltamos a ele) diz para o ciclope Polifemo: “meu nome é ninguém”.
Ao investigar o que conseguia lembrar desse tio-avô, falecido em 2002, aos 77 anos, Charbel percorre também a trajetória do Brasil das últimas décadas. Temos o país do começo da era Lula, do golpe de 2016 e do trauma da recente pandemia. Apesar de tantas confusões e reviravoltas, se seu personagem ainda estivesse vivo, provavelmente teria preferido permanecer alienado, protegido no quartinho dos fundos, envolto na espessa fumaça dos cigarros que mantinha por companhia. E é justamente esse impasse entre a crise do mundo e as idiossincrasias da sua família que adensa a trama de Saia da frente do meu sol, que faz dele um livro generoso, um livro sobre todos nós.
O tio-avô Ricardo Vidal Alvarez permanece como uma sombra disforme até quase o fim do romance. Só no último capítulo, As fotografias no armário, ele começa a emergir na nossa frente como o homem que se perdeu e que foi perdido. O narrador-Charbel começa a investigar as fotos de juventude de Ricardo, que encontra meio escondidas no fundo do álbum familiar. Começa a notar o quanto ele talvez tenha sido uma espécie de galã quando jovem e a ter noção do seu entorno. Nota que, nas fotos, aparecia apenas cercado por outros homens, todos felizes, num mundo só deles, o que talvez justificasse o pouco da história de Ricardo que era compartilhada pelos parentes, a alcunha de “complicado” que ele ganhara e mesmo o seu pudor de interagir com os outros membros da família durante os seus últimos anos.
O narrador-Charbel lembra, ao atravessar o álbum de fotos, que Roland Barthes em A câmara clara menciona uma “coisa um pouco terrível”, que, “há em toda fotografia: o retorno do morto”. Mas, no caso das fotos de juventude do tio Ricardo, o oposto do argumento do teórico francês acontece: “O que vejo nas fotos não é o retorno do morto, mas o retorno do vivo”.
Ao imaginar o homem que um dia foi seu tio Ricardo, o narrador-Charbel promove não só a volta do boêmio. Também faz a vingança do boêmio.