A amplitude de José Paulo Paes (1926-1998) como homem de Letras parece não ter sido ainda devidamente mensurada. Poeta de vasta obra que atravessa seis décadas de produção, editor responsável por inúmeros títulos e um dos principais tradutores literários do país, também construiu um relevante trabalho ensaístico ao longo dos anos. Boa parte desse acervo está enfim reunida nas mais de mil páginas dos dois volumes de José Paulo Paes: Crítica reunida sobre Literatura Brasileira & inéditos em livros, da Cepe Editora e Ateliê Editorial, com organização de Fernando Paixão e Ieda Lebensztayn. Além de dezenas de artigos sobre Literatura Brasileira (o recorte da coletânea), há três textos que comentam a ensaística paesiana: escritos inéditos de cada um dos organizadores, e um depoimento de 2016 de Alfredo Bosi (1936-2021), que foi amigo próximo de José Paulo.
É justamente de Bosi a percepção que parece resumir tão ampla massa crítica: trata-se do labor de um autodidata que lê por prazer, “leitor livre e sem fronteiras”, ao contrário do especialista que fixa seu repertório e é obrigado a limitar-se a ele. Como Augusto de Campos, Paes foi um dos raros críticos de vulto na cena literária brasileira da segunda metade do século XX que não foi ligado à universidade, fato comentado por Fernando Paixão, que assinala o “privilégio” de escolha dos temas de suas análises. Não se trata, aqui, de uma questão de tempo ou disponibilidade – afinal, durante boa parte de sua vida Paes trabalhou de modo integral em uma editora –, mas das possibilidades abertas por não pertencer às convenções e ritos acadêmicos. Isso se reflete na abordagem a assuntos de rara penetração na intelligentsia universitária, como livros de ficção científica, policiais, além da “ousadia” de resgatar autores até então praticamente desconhecidos, como Sosígenes Costa (1901-1968) e Jacinta Passos (1914-1973).
Sem precisar prestar contas às correntes teóricas da moda, Paes desenvolve um olhar agudo ao fenômeno literário de diversas épocas e gêneros. Quem lê os tantos artigos dos dois volumes percebe que não há um padrão metodológico em seu modus operandi de ensaísta, mas que, como bom tradutor, empreende uma operação de fusão completa com o texto-alvo, de modo que suas críticas camaleônicas se assentam à necessidade imposta pelo que é analisado. Em As quatro vidas de Augusto dos Anjos, por exemplo, lança mão de aspectos biográficos introjetados na obra do poeta em plenos anos do auge do Estruturalismo; já em Pavão, parlenda, Paraíso, propõe leituras aprofundadas, verso a verso, da poesia de Sosígenes Costa, em um exercício estilístico de fôlego; para além dos estudos de caso, capta tendências panorâmicas que atravessam diferentes autores, como em O Art Nouveau na Literatura Brasileira, que identifica aspectos da “arte nova” em escritores anteriores ao Modernismo no Brasil, ou em O Surrealismo na Literatura Brasileira, que atravessa diferentes momentos de presença (ou ausência) surrealista no país.
Tal capacidade de centrar-se no objeto literário sem um viés pré-definido não significa que Paes prescinda do diálogo com múltiplas teorias. Ao contrário, navega por muitas delas com familiaridade, como em O pobre-diabo no romance brasileiro, quando faz detida consideração sobre a teoria do romance de Lukács, de quem empresta o conceito de “herói problemático” para radicalizá-lo na hoje já clássica definição de “pobre-diabo”, aplicável a personagens de Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Graciliano Ramos e Dyonelio Machado; já em O lugar do outro, faz ousado entrecruzamento da teoria da narrativa com a filosofia de Ortega y Gasset para definir o romance como o “lugar por excelência da representação literária da outridade”, já que a permeabilidade dos personagens permite ao leitor uma experiência de contato com a alteridade não comparável às barreiras interpessoais do mundo real; ou ainda em Para uma arqueologia da ficção científica, em que a célebre teoria das formas simples, de André Jolles, é recrutada para aproximar a ficção científica do arquétipo das adivinhas, pois em ambas é o saber que define os rumos do personagem ou mesmo da humanidade. Se para a última o conhecimento exigido é geralmente de ordem mítica, na primeira o que está em jogo é o domínio científico-tecnológico.
De especial interesse na coletânea é a seção Ensaios inéditos em livros do autor, que revela dezenas de textos antes esparsos em diversas publicações. Além de alguns depoimentos escritos sob encomenda, destaca-se um ativo resenhista do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, comentando em breves linhas lançamentos de autores tão diferentes como Lúcio Cardoso (1912-1968), Carlos Vogt e Régis Bonvicino, entre outros. Mas o principal documento dessa parte da antologia parece ser Carlos Drummond de Andrade e o Humour, texto escrito em três partes para o jornal O Dia, de Curitiba, em 1948. Ali, revela-se um jovem crítico que passa em escrutínio o trabalho de Drummond, a quem considerava um mestre e havia homenageado em seu primeiro livro de poesia, O aluno, um ano antes. Chama a atenção o tom às vezes ácido que Paes adota ao identificar na obra do escritor mineiro (em especial em A rosa do povo) uma natureza social, porém não revolucionária como as de Castro Alves ou Maiakóvski (aqui, citado mais de uma década antes das traduções dos irmãos Campos e de Boris Schnaiderman).
Assim, o artigo estabelece uma dicotomia dentro da categoria da “arte social”: há obras que, como as supracitadas, desempenham “papel político militante”, de modo que se tornem “socializantes” e “funcionais”; e outras que, como a poesia drummondiana, são apenas “tematicamente sociais”. O crítico justifica a assertiva ao apontar que o autor mineiro ignorava a realidade imediata e circunstancial do mundo, transpondo o contexto político “para um plano de abstração, deformando as situações concretas em mitos, em símbolos”. Embora Paes esteja se contrapondo diretamente ao texto Poeta revolucionário, que o crítico Álvaro Lins (1912-1970) publica em 1946 sobre o mesmo livro, a visão de que há uma “metafísica” do social em A rosa do povo destoa bastante de grande parte da fortuna crítica acerca da obra.
Ao desdobrar tais afirmações, o artigo revela seu principal argumento: o que se chama de “abuso da abstração” é motivado pelas idiossincrasias da pequena burguesia, “de seus dilemas e de suas indecisões em face de uma escolha política frequentemente difícil e dolorosa”. Citando Sartre, Paes insere Drummond no dilema dos intelectuais daquele tempo: por estarem em uma posição privilegiada, podem compreender racionalmente as dificuldades e injustiças por que passa o proletariado, mas são incapazes de uma aproximação real com os estratos mais pobres da sociedade. A solução do poeta mineiro para lidar com tal contradição é o humour, tentativa de ataque à sociedade capitalista, mas que, para o ensaísta, o mantém em posição “confortável, anti-heroica e… pequeno-burguesa”.
O vocabulário que José Paulo Paes usa nesse texto revela o seu amplo envolvimento com as teorias marxistas ao longo das décadas de 1940 e 1950, como ele próprio afirma em sua autobiografia, Quem, eu? Um poeta como outro qualquer. Isso fica nítido em sua obra poética, especialmente nos livros Novas cartas chilenas (1954) e Epigramas (1958), cuja verve política é contundente. Seria a partir dos anos 1960 que, tanto em sua poesia como na crítica, atingiria uma maturidade mais liberta da necessidade participante como uma amarra criativa, sem jamais abandonar, contudo, os temas sociais. Desse modo, apesar de apresentar insights criativos sobre a poesia de Drummond, o jovem ensaísta parece exagerar no estro crítico, o que pode se confirmar com a mudança de tom em textos posteriores sobre o mestre mineiro, bem comentados por Ieda Lebensztayn em sua introdução.
É justamente após 1960 que quase todos os ensaios da coletânea são escritos, motivo pelo qual o artigo sobre Drummond destoa tanto em seu estilo. É curioso notar, ao longo das mais de mil páginas divididas em dois volumes, como Paes se insere em tantas e tão diversas discussões literárias nacionais, às vezes complementando, outras vezes contrapondo-se a tantos críticos. Há também momentos de breves percepções de um leitor altamente arguto, que de maneira despretensiosa antecipa em décadas visões hoje tidas como canônicas. Um exemplo disso é Um bacharel no Purgatório, em que descreve a obra de Gregório de Matos a partir da premissa do “despeito” e da “sátira”. Por meio do diálogo com poemas e com a fortuna crítica anterior, traça um perfil do poeta baiano que contrastava com a sua imagem até então preponderante: “Nem era Gregório de Matos democrata, nem era conscientemente antilusitano”. Longe do subversivo revolucionário em que o tentaram transformar, o Boca do Inferno usou da zombaria para atacar a tudo e a todos, sem uma verve deliberadamente anticolonial, o que se nota em uma análise de seus alvos, que incluem “governantes e governados”, com especial carga na tinta, inclusive, para a ridicularização daqueles que ele chamava de “mulatos”, o que faz Paes recorrer a uma citação de Xavier Marques (1861-1942), que identifica na obra “um preconceito de casta e pigmento”.
Este artigo, de 1961, era claramente destoante do teor da maioria das análises sobre Gregório que circulavam na época. Muitos anos depois, porém, tal linha de compreensão se tornaria consagrada, em especial a partir de 1989, com o lançamento de A sátira e o engenho, de João Adolfo Hansen, longo e atento estudo que aponta o caráter por vezes conservador do poeta baiano. Longe da amplitude e do aprofundamento desse trabalho, o fato é que Paes apontara uma leitura embrionária e original da poesia em tela.
Se aqui percebemos confluências entre a crítica paesiana e a Academia, em outros momentos há um afastamento claro da tradição universitária, como em Por uma Literatura Brasileira de entretenimento (ou: O mordomo não é o único culpado), em que a polêmica divisão entre “literatura de massa” e “literatura de proposta” – tema talvez negligenciado até hoje nas fileiras das instituições – é tratada de maneira aberta e sem preconceitos. A primeira, voltada ao entretenimento e estruturada a partir de fórmulas repetidas, é colocada em uma dimensão arquetípica do fenômeno literário, em que a aventura, o amor e a investigação policial exercem o papel de “aliciar o interesse dos leitores”, motivo pelo qual os livros de inovação ou as “Belas Letras” não podem prescindir de uma massa de consumidores de best-sellers, pois é dela que emergirá um grupo de interessados na dita “alta literatura”.
A coletânea dos artigos de José Paulo Paes é de amplo interesse para pesquisadores e amantes da Literatura. Ela oferece uma vasta gama de assuntos vistos pelo crivo de um crítico sensível e articulado, que com a mesma discrição de suas traduções, logra abdicar de si para pôr o outro em evidência, sacrifício imposto pelo profundo respeito que nutria pelo fenômeno literário.