Cedric RobinsonDivulgação Ed.Perpsectiva junho.23

 

 

Por trás de grandes livros escritos por intelectuais negros radicais ao longo do século XX, ressoa uma certa inquietude. São obras que buscam falar aquilo que foi silenciado, distorcido ou trivializado pelo racismo nos espaços acadêmicos e políticos. Palavras que materializam uma experiência coletiva, de militância e contribuição teórica, a respeito de como a existência negra ainda causa desconcerto e desconforto para a práxis e a coerência histórica dominantes no coração da esquerda ocidental. Marxismo Negro (Perspectiva, 2023), de Cedric Robinson (1940-2016), insere-se nessa longa tradição que revisita o cânone crítico para subvertê-lo. Ele nasce de uma fome de tudo, que escava as minúcias, investiga as pontas soltas e observa por outro olhar argumentos tidos como verdades absolutas. E, assim, é um estrondo visceral oriundo do interior. Expressa todo um mundo que precisa ser dito e colocado para fora, pois o mundo exterior foi até então extremamente malcompreendido.

Publicado originalmente em 1983, em um interregno no qual a hegemonia neoliberal já eclipsava o potencial emancipador das lutas antirracistas por libertação e por direitos civis, travadas ao longo do século XX, o livro foi ignorado e atacado nas duas décadas seguintes. Somente em 2000, com uma nova edição e, nos últimos anos, com o retorno do radicalismo negro ao palco central da arena política estadunidense, a obra de Robinson foi resgatada do ostracismo a que foi atirada. Sua tradução — feita por Fernanda Sousa e Silva, Caio Netto dos Santos, Margarida Goldsztajn e Daniela Gomes — chega a nós brasileiros também em decorrência da luta, como aquela que levou às ações afirmativas, à maior presença negra no Ensino Superior e, consequentemente, ao incremento da demanda por obras de intelectuais negros e negras da diáspora, tensionando o racismo bizarro e ultrajante do mercado editorial brasileiro. Decorre também da luta negra dentro do marxismo brasileiro, que, nos últimos anos, assistiu a emergência de novos intelectuais e de uma juventude disposta a enfrentar o eurocentrismo e a mentalidade colonial renitentes da esquerda nacional. Esses silêncios, incompreensões e batalhas ajudam a entender uma obra que associa, em seu título, o signo negro ao marxismo, mas que, na verdade, é uma crítica ao marxismo ocidental hegemônico por meio da inserção do radicalismo negro no relato histórico e na teoria política.

Como aponta Robin Kelley na apresentação, o livro de Cedric Robinson constrói dois conceitos centrais: capitalismo racial e tradição radical negra. Em relação ao primeiro, o principal ponto é apontar como a “raça” é o elemento cultural fundamental que permite a emergência do capital. Reconstruindo a longa história da Europa ocidental, Robinson argumenta que o racismo, antes de ser um elemento eminentemente moderno, antecede o capitalismo, estando presente nas características do mundo feudal, como a tradição da escravidão e da plantation no continente e no Mediterrâneo, os regimes de sangue e pureza incorporados na emergência do Estado absolutista e a construção de uma imaginação histórico-religiosa baseada na noção de um outro a ser convertido, combatido ou escravizado. Com isso, relativiza-se a hipótese sobre o caráter revolucionário e racionalizador da ordem burguesa, pois as relações capitalistas não seriam uma negação do feudalismo, mas sim a generalização dessas relações sobre o mundo moderno. Isso se daria especialmente por meio da escravidão e do tráfico transatlântico de africanos, realizados na infância do capital, em que a tendência europeia de exagerar diferenças regionais, subculturais e dialéticas seriam potencializadas e cristalizadas, tornando-se o que passou a ser conhecido como diferenças “raciais”.

Assim, desbravando um caminho que seria posteriormente enfrentado por intelectuais como Achille Mbembe e Denise Ferreira da Silva, Robinson descreve como a criação do negro foi a mais “formidável” e “absurda” invenção do capital e do desenvolvimento ocidental. Ela implicou na obliteração radical do passado civilizacional africano e de uma inversão da relação África-Europa. Tendo o “mouro” como antecedente imediato, a forja europeia do africano elaborou o “negro” como inimigo doméstico, em que o próprio europeu surgia e se determinava em negação às pessoas não-brancas. O “negro” passou a significar uma ausência de situação, fora da história e da geografia política. Sem humanidade e valores, foi transformado em grupo marginal, coleção de coisas de conveniência para uso e/ou erradicação. Uma pluralidade de pessoas e culturas desfiguradas em buraco negro, sumidouro que tudo traga para além do espaço e do tempo. Singularidade da qual, em oposição, nascem o brilho e a integridade do mundo ocidental.

A intervenção de Robinson visava não só repensar temporalmente e culturalmente as origens do capitalismo, pois também rompeu com a concepção de excepcionalidade europeia. Enraizando a emergência do capital nas relações do sistema-mundo, o livro está entre os pioneiros que ressaltam a importância de uma perspectiva atlântica para a compreensão da modernidade. Esse enquadramento mais amplo é evidenciado no trato acurado do colonialismo português no Atlântico Sul e, consequentemente, da formação social brasileira – algo que continua extremamente incomum no pensamento crítico realizado nas academias estadunidense e europeia, perdidas no seu autocentramento. Para Robinson, o foco na Europa para explicar o surgimento do capitalismo ecoava, inclusive na crítica marxista, a própria subjetividade de classe da burguesia metropolitana, fração específica da economia mundial. Com isso, o marxismo teria sido constituído por uma teoria geométrica da luta de classes, que secundarizava o papel da emancipação humana atribuído a trabalhadores que não fossem homens, brancos, europeus e assalariados (o proletariado industrial).

Esse erro de origem teria dois desdobramentos profundos. Ao desconsiderar o impacto da metafísica ocidental sobre a formação cultural das classes no capitalismo, o marxismo hegemônico foi incapaz de compreender como o racismo cria diferenças entre os operários e impede a universalização do proletariado como sujeito histórico universal e revolucionário. Atravessado pelo impacto das leis Jim Crow na sua experiência familiar, Robinson entendia muito bem como a própria classe trabalhadora branca poderia ser um agente determinante da brutalidade, trocando sua exploração econômica pelos ganhos simbólicos da violência racial, naquilo que W. E. B. Du Bois havia chamado de “salário público e psicológico” da branquidade. O segundo desdobramento foi ignorar ou periferizar a reflexão sobre as rebeliões subalternizadas ocorridas fora da Europa, em especial aquelas constituídas por pessoas não-brancas. No caso dos africanos raptados para as Américas, o papel do escravizado foi entendido como resíduo de um modo de produção pré-capitalista, que os desqualificava como agentes históricos e políticos. O marxismo dominante dispensou qualquer tipo de consideração sobre a consciência revolucionária do escravizado, desprezando o seu discurso a respeito da liberdade humana. Consequentemente, construiu uma linguagem emancipatória baseada na própria metafísica ocidental que possibilitou e mantém a estrutura de dominação do capital. Uma cultura política crítica que não rompeu com a cultura política da “raça”.

O outro desenvolvimento conceitual do livro é o da tradição radical negra. Para evidenciá-la teoricamente, mais do que a exposição abstrata do conceito, Robinson reconstrói a história de desenvolvimento do capitalismo dando destaque à presença constante de rebeliões negras nas diversas margens do Atlântico. Ao enfatizar a africanidade dessas lutas – uma totalidade ontológica inacessível à consciência burguesa e que resiste à coisificação da violência racial –, o autor delimita as três grandes características dessa tradição radical. Primeiro: os movimentos negros por liberdade têm como matriz dialética a escravidão (e, posteriormente, as diversas formas de acumulação primitiva), o imperialismo e o racismo. Segundo: em geral, a luta negra é informada pela ausência de violência em massa, buscando justiça sem revidar com o mesmo tipo de terror do colonizado. A estratégia não é o enfrentamento direto, mas sim a desconexão, o isolamento e o desligamento como armas ideológicas. Por fim, a tradição negra opera na supremacia da metafísica sobre o materialismo. Da espiritualidade sobre o mundo terreno. Dos mortos e das entidades sobre os vivos. Uma práxis da transcendência que se faz, a todo momento, evocando o bosque dos fantasmas.

O ponto alto do livro são os últimos três capítulos, quando Robinson analisa os encontros e desencontros entre marxismo e tradição radical negra por meio da trajetória e das contribuições teóricas de Du Bois, C. L. R. James e Richard Wright. Num entrelaçamento entre reconstituição biográfica, análise de contexto e teoria marxista, a narrativa se vale desses três intelectuais para repensar o marxismo ocidental. Os debates são múltiplos. Sem a pretensão de ser enciclopédico, destacam-se a crítica ao capitalismo (atrelando-o decisivamente ao mundo construído pela escravidão, fundamentado na violência antinegra e na acumulação primitiva); o caráter da consciência revolucionária (desessencializando o proletariado industrial); as relações entre raça e classe (apontando como o racismo foi e é capaz de submeter o trabalhador branco ao nacionalismo burguês); as mediações entre partido e vanguarda (em que Toussaint Louverture opera como um espelho para refletir a influência da pequena burguesia na tradição comunista); e a natureza da consciência de classe (como Wright apontava, não se pode presumir o caráter progressista da classe operária, pois os dramas dos trabalhadores carregam em si a possibilidade do fascismo ou do comunismo). Como argumenta Du Bois, nas sociedades de plantation do século XIX deve ser vasculhado o enigma do capital, pois elas foram o protótipo e o prenúncio, o microcosmo do sistema mundial. Não eram, portanto, um anacronismo, mas sim uma advertência.

O poderoso esforço de releitura do marxismo à luz do radicalismo negro é por si só instigante e também deixa questionamentos a respeito da abordagem de Robinson. Talvez, o mais evidente é a maneira como ele trata as lógicas de aquilombamento no período da escravidão. Para o autor, o impulso fundamental dos quilombos era a preservação de uma consciência histórica e social, em que os territórios negros representavam uma desconexão com a sociedade de plantation. Talvez informado pelas leituras de etnólogos de meados do século XX, como os brasileiros Edison Carneiro e Arthur Ramos, essa concepção de isolamento e manutenção da africanidade é difícil de ser sustentada à luz da historiografia sobre os quilombos nas Américas surgida a partir da década de 1980, como bem demarca Flávio dos Santos Gomes, no livro Histórias de quilombolas. A quilombagem estava em constante contato com o mundo circundante por meio de relações políticas, econômicas e culturais. Resistia e negociava das mais diversas formas, em fricção com o restante da sociedade e não exclusivamente pelo afastamento total. Não eram relações sociais apartadas, portanto. Além disso, a leitura de Robinson reduz a pressão dialética exercida pelas lutas negras nas transformações do capitalismo. Como argumentou Clóvis Moura desde o seu clássico Rebeliões da senzala, por mais que fugas, quilombos e revoltas não tivessem a pretensão em si de reformar as relações de produção capitalista, elas desgastavam e dinamizavam a estrutura econômica. À exceção de passagens sobre a obra de Du Bois, a concepção de desconexão como arma ideológica não permite o pleno entendimento de como as lutas negras conformaram as estratégias, as mudanças, a reorganização e as lógicas do capital. Isto é, como o capitalismo tal qual o conhecemos foi e é determinado pela própria tradição radical negra, especialmente para rebaixar e impedir sua plena manifestação revolucionária.

Esses são questionamentos para futuros debates. O importante é que, finalmente, o clássico de Robinson está entre nós com suas contribuições urgentes e necessárias. Que a sua tradução, bebida na experiência do radicalismo negro brasileiro, contribua para o incremento da teoria e da práxis rebelde no nosso país.